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“O SEQUESTRO DO PAPA” – A força do olhar

A todo momento estamos sujeitos a forças que modulam nossa forma de enxergar o mundo. Historicamente, bases hegemônicas se apropriaram desse fazer para impor determinados princípios, buscando formas de preservar o seu poder. É o caso da Igreja Católica, especialista nesse feitio durante o apogeu da Inquisição europeia. Temos o cenário de O SEQUESTRO DO PAPA, carta ferrenha que denuncia as hipocrisias e abusos mantidos pela instituição religiosa até os dias de hoje.

Em 1858, na Bolonha, a vida de uma família judia é completamente abalada quando se descobre que um dos filhos mais novos, Edgardo, foi batizado em segredo. O menino é forçosamente retirado dos pais, Salomão e Marianna Mortara, pelas ordens do Papa Pio IX. A batalha para reaver a criança ganha proporções inimagináveis, colocando em cheque todo sistema do poder religioso.

Dirigido pelo italiano Marco Bellocchio, crítico assíduo da Igreja e suas estratégias de influência, o filme abarca o melodrama para propor um jogo entre as diferentes perspectivas de suas personagens. Embora alcance, em determinada passagem, o “drama de tribunal”, isso é muito menos uma forma de suspender a fidelidade entre público e narradores – e nos fazer duvidar daquilo que está sendo relatado -, mas sim remonta à própria ideia de “olhar” enquanto conceito.

(© Pandora Filmes / Divulgação)

Seja na proteção das cobertas de sua cama ou por debaixo da longa túnica de seu sequestrador, Bellocchio pontua a aproximação aos olhos de Edgardo (Enea Sala). São instantes em que o mundo afora se paralisa, e os lados opostos na formação do garoto enquanto sujeito deixam de existir. O que importa ali é a sua dificuldade em definir a sua forma de se relacionar com o mundo.

Os vizinhos da família Mortara testemunham a retirada violenta do garoto, compartilhando olhares de horror. Corroboram para o senso de religião enquanto unificadora de comunidades, tanto para o bem quanto para o mal. Mais do que a rigidez de determinados princípios e leis, a direção trabalha a ideia de um coletivo, que alinha ideais e permite o pertencimento.

Edgardo é atravessado por essas significações. Bellocchio constrói a sua dubiedade com bastante cuidado, confundindo seus instintos de sobrevivência – necessárias, ao menos inicialmente, perante o inimigo de lábia sedutora – com os primeiros efeitos de sua alienação. 

Essa dualidade descreve os demais aspectos da encenação. Bellocchio alterna entre os primeiros planos e os planos gerais, que apresentam a imensidão dos ambientes, onipotentes e ocos na mesma medida. Os espaços são marcadas por poucas fontes de luz, e o alto contraste reforça a ideia desse constante embate entre forças. O bem e o mal, o sagrado e o profano, o espírito e o corpo. 

O diretor inclusive explora essa ideia dos símbolos esvaziados com certa comicidade, permitindo ao filme flertar com algumas passagens mais lúdicas, e muito marcadas, que surpreendem ao espectador ao desafiar a sua própria descrença. Ele evidencia a porosidade dos argumentos religiosos, intoxicados pelo que há de pior no ser humano, e testa a crença que o espectador deposita nas imagens sendo ali construídas. Exemplo disso se dá na sequência em que o menino testemunha a humanização de uma estátua de Jesus crucificado, quando a mesma ganha vida e abandona o seu status simbólico.
Outro recurso interessante é a aproximação ao teatro escolhida para determinadas cenas. Por se tratar de um filme de época, muitos espaços são registrados em sua magnitude, valorizando os esforços das recriações e os esmeros da direção de arte. Em muitos desses realces, Bellocchio opta por um preenchimento extremamente evidente de suas personagens. Elas entram e ocupam o quadro de forma quase mecânica, reconhecendo o próprio limite entre ator e personagem.

É como se o filme admitisse a sua própria dimensão cênica, evidenciando mais uma vez a finitude desse conjunto de signos, superado pela complexidade de morais humanas impassíveis de serem resumidos ao plástico. Existe sempre muito mais do que o que os olhos alcançam.

Nesse sentido, e embora as cores e a fotografia sóbrias se encontrem nesse circuito, “O sequestro do papa” se encontra muito além do drama tradicional. O filme investe em um sedutor jogo de duplos, onde o melodrama de rostos e lágrimas enfrenta a desconstrução dos signos mais reluzentes. Ao final, sobra um senso de perdição que nenhum código religioso é capaz de solucionar: tudo depende da maneira como escolhemos olhar para esse mundo.