“O SABOR DA VIDA” – Um ato mágico com múltiplas sensações [25 F. RIO]
A sala de cinema se enche. As luzes se apagam. As primeiras imagens se projetam na tela grande. Os primeiros minutos de projeção se desenvolvem. A sequência inicial toma forma. Os espectadores reagem com suspiros, interjeições e murmúrios de satisfação. A descrição da experiência coletiva de assistir ao drama O SABOR DA VIDA no cinema dá uma boa indicação do impacto que o filme causa na plateia. É difícil se manter indiferente à proposta sensorial envolvente que faz do ato de cozinhar um ato mágico.
Os cozinheiros em questão são Dodin e Eugenie. Ele é um conceituado chef francês e ela, uma habilidosa cozinheira. Os dois trabalham juntos há 20 anos, desenvolvendo uma sintonia sem comparações. Este vínculo dá origem a pratos deliciosos apreciados por todos e a um romance platônico do homem. Quando Dodin decide convencer Eugenie a se casar com ele, cozinha para a pretendente como um gesto de amor.
Por que as reações do público nessa sessão específica foram assim? Uma resposta possível é a seguinte: o diretor Tran Anh Hung valoriza o preparo de uma refeição como uma experiência cinematográfica múltipla. Dodin oferece um jantar a seus convidados preparado por Eugenie com o auxílio de duas jovens aprendizes, contendo entrada, prato principal e sobremesa. O cineasta compreende que cada ação, movimento e etapa do trabalho na cozinha importa, desde o corte preciso dos alimentos, a mistura específica dos ingredientes até a apresentação do prato finalizado. Por isso, a câmera se comporta como uma bailarina que se move de maneira fluida pelas panelas e louças, fazendo planos detalhes que ressaltam o que é feito. Como consequência, os espectadores são convidados a experimentar os sons dos talheres e o contato de um alimento sob a frigideira quente, além de imaginar os aromas de um molho, as texturas das carnes e o sabor do jantar pronto.
Se Tran Anh Hung se limitasse a tornar a câmera uma intermediária entre os estímulos sensoriais da culinária e o público, já haveria um trabalho sofisticado na narrativa. Porém, ele vai além e estabelece relações entre a gastronomia, a história, a diplomacia e a arte. Personagens históricos são tomados como referência para um cozinheiro renomado, afinal Dodin é conhecido como Napoleão da culinária. Interações cordiais com um príncipe estrangeiro são construídas através da organização de um banquete com o melhor menu possível. E a habilidade de Eugenie é comparada a de uma artista que produz uma obra prima atrás da outra para o deleite de seus admiradores. Então, cozinhar pode ser tanto uma experiência sensorial de múltiplas possibilidades quanto uma série de alegorias temáticas sobre distintas áreas da vida social.
O longo tempo de convivência e de trabalho de Dodin e Eugenie possibilita maior intimidade entre eles. o home se apaixona pela mulher e demonstra seu afeto, sobretudo, em momentos em que se encontram sozinhos, por exemplo quando descansa à noite deitada nua em sua cama e recebe a visita do chef. Acima de tudo, o amor é demonstrado pela refeição preparada e servida com tanto cuidado para a cozinheira. Novamente, o cineasta cria uma decupagem expressiva que valoriza o passo a passo do preparo por parte do Dodin e a degustação feita por Eugenie na mesa de jantar. Assim, a concretização do romance não acontece somente pelo aproveitamento da ocasião especial para um gesto simbólico de pedido de casamento. A própria refeição em si também simboliza uma declaração de amor por conta do significado dado ao jantar e dos pratos escolhidos.
Juliette Binoche e Benoît Magimel são cruciais para definir os romances que perpassam a narrativa. Embora o relacionamento entre eles tenha levado algum tempo para se realizar, os atores traduzem com eficiência a dinâmica entre os personagens nos momentos em que dividem as tarefas na cozinha e mostram o carinho mútuo nos pequenos detalhes de olhares, toques e breves diálogos. Por mais que possa existir uma relação de funcionária e chef, Dodin demonstra constantemente que não vê Eugenie apenas como alguém que trabalha para ele. Além disso, os dois protagonistas fazem o amor transbordar para o ato de cozinhar em suas diversas facetas. Dentro da cozinha, é preciso amar a alquimia que se realiza para combinar ingredientes, temperos e técnicas para criar algo ou potencializar o sabor (como é o caso da explicação para o preparo do Bolo Alaska). Ainda nesse espaço, o sentimento se manifesta na atenção necessária para ensinar as jovens gerações. Fora da cozinha, há uma ternura na forma como o trabalho deve começar bem antes no cuidado da horta e do recolhimento das ervas e temperos.
Tran Anh Hung sabe que nem sempre os pratos saem perfeitos com os melhores sabores. Por vezes, é possível que um gosto amargo ou agridoce apareça. Na culinária, pode ser um erro de concepção ou execução que será corrigido na oportunidade seguinte. Na vida, pode ser uma infelicidade imprevisível, um acaso enigmático ou uma tragédia inerente à própria existência. Ao redor de uma convivência tão amorosa que tende a melhorar ainda mais com o tempo, uma doença chega inesperadamente para desestabilizar as expectativas para o futuro. O cineasta insere aos poucos esta virada dramática a partir de algumas cenas que preparam o terreno e apontam para um destino não tão agradável como os pratos preparados. Enquanto o roteiro trabalha com as pistas para construção de um cenário maior adiante, a fotografia passa a ter uma iluminação mais sombria que sufoca o brilho até então permitido pela magia da gastronomia. Logo, a vitalidade da preparação de uma refeição seguida de sua degustação contrasta com a aparição de uma doença debilitadora.
Nem todas as sensações propostas pelo filme despertam suspiros de satisfação. Algumas podem gerar a infelicidade de ver uma relação ser interrompida em pouco tempo. O impacto de uma perda tão grande é devastadora, inclusive desestabilizando até o ato de cozinhar. Os ambientes se tornam escuros, a melancolia preenche os dias e a câmera perde o interesse pela preparação dos pratos e pela exibição dos alimentos finalizados. Como lidar com o futuro se a dupla não estará mais presente como já esteve? Buscar um substituto? A substituição jamais será plena, pois cozinhar envolve também memórias e sentimentos. Então, não se trata de tentar encontrar alguém que cumpra o mesmo papel de quem se foi. “O sabor da vida” identifica que outros talentos podem existir, mesmo que não reproduza a mesma emoção anterior. Para isso, as lembranças podem resgatar as melhores experiências vividas. É o caso de uma refeição que nos leva para outro tempo com outro clima em que a câmera se movimenta sutilmente para registrar alguns romances.
*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.