“O RETORNO DE MARY POPPINS” – Uma fração do original
Para ler a crítica do clássico “Mary Poppins”, de 1964, clique aqui.
Em uma era de remakes e reboots, é muito bom que o clássico “Mary Poppins” tenha recebido uma continuação coerente. Elementos marcantes do filme de 1964 se repetem – a Rua das Cerejeiras, a boca aberta de Michael, o vizinho almirante marcando a hora através de tiros de canhão, o guarda-chuva falante etc., havendo um progresso cronológico sem prejuízo da coesão narrativa.
O longa se passa na época da Grande Depressão, o que é enfatizado para explicar a difícil financeira do agora adulto Michael Banks. Mesmo com a ajuda de sua irmã Jane, ele e seus filhos John, Annabel e Georgie estão sendo expulsos de sua casa por uma dívida perante o banco. É nesse momento que Mary Poppins reaparece para ajudar a família Banks.
Ao contrário do que ocorre no primeiro longa, quem mais precisa de amparo são os adultos e não as crianças. Vivido por um sempre eficiente Ben Whishaw, Michael Banks é um viúvo que se espelha um pouco em seu pai, mas que não tem as mesmas certezas inabaláveis, tampouco a sua inflexibilidade. Parte disso se percebe no trato dos filhos, pois Michael é muito mais carinhoso que seu pai George. A Jane de Emily Mortimer praticamente não é aprofundada, limitando a carismática atriz a uma organizadora sindical solteira em cujo colo cai um romance nada convincente.
Estruturalmente, o plot repete a ideia de 1964 segundo a qual os adultos precisam aprender com a sabedoria infantil. Entretanto, John (Nathanael Saleh) e Annabel (Pixie Davies) são bastante adultas para as suas idades: os filhos mais velhos de Michael custam a acreditar no universo surreal que Mary Poppins lhes apresenta. John, por exemplo, afirma que, se algo não faz sentido, não pode ser real, no que a babá responde que lógica é a base da sociedade. Diversamente, o pequeno Georgie (Joel Dawson) é o mais imaginativo e travesso dos três, mas ironicamente batizado com o nome de alguém tão seco quanto seu avô. Segundo Michael, o menino sofre de “excesso de imaginação”, enquanto a babá responde “touché” ao patrão quando diz que ele mesmo era assim.
O roteiro de David Magee é bem mais organizado que o do primeiro filme ao dar propósitos específicos a todas as personagens, é tão claro quanto o anterior ao transmitir suas mensagens e mais singelo que o clássico ao pessoalizar o antagonismo, desperdiçando um ator do alto nível que é Colin Firth. Outras participações especiais também são desperdícios descomunais: Julie Walters interpreta uma personagem inútil; Meryl Streep é protagonista de uma única sequência sem essencialidade narrativa para deixar claro que sua presença se justifica para dar envergadura à produção em razão do que ela representa na sétima arte. Mesmo em um papel minúsculo e narrativamente supérfluo (tanto que a tigela é esquecida), a atriz cria um sotaque especial e faz com que a mensagem (segundo a qual tudo depende da maneira como se enxerga) seja enriquecida por um número musical eficaz.
Mencionado rapidamente, Bert, o fiel escudeiro de Mary Poppins, não retorna (embora Dick Van Dyke também faça uma participação especial). No seu lugar está Jack, interpretado por Lin-Manuel Miranda, sem dúvida um dos maiores defeitos do filme. No aspecto musical, a voz estridente do artista não combina com a doçura do universo mágico da babá; do ponto de vista do script, a personagem é pobre e não possui um arco dramático próprio organicamente unido à trama. O acendedor de lampiões muito mais atrapalha do que ajuda – com muito menos tempo de tela, Kobna Holdbrook-Smith é bem mais carismático. Infelizmente, a versão Emily Blunt da protagonista decepciona um pouco não pela atriz, que é excelente, mas pelo roteiro que a descaracteriza em alguns momentos. Blunt é bastante fiel ao que já se conhece de Poppins e o mesmo se pode dizer de seus ensinamentos – e de sua bela voz. Porém, era inconcebível que uma babá tão especial deixasse as crianças quebrarem uma peça de porcelana (que podia machucá-las) enquanto conversava com um amigo. Igualmente, chegar tarde em casa por se perder não é compatível com o perfil de Mary Poppins.
Experiente em dirigir musicais (“Chicago”, “Nine” e “Caminhos da floresta”), Rob Marshall tem em sua obra apresentações com boas coreografias (o número dos lumes é belíssimo) e uma estética aprazível, sem perder a coerência com o filme de 1964. Os efeitos visuais não têm o mesmo impacto sessentista, já que não representam o mesmo progresso tecnológico, harmonizando-se com o primeiro filme ao exagerar nas cores e no aspecto fantástico da estética. “O retorno de Mary Poppins” tem bons atributos, como a coerência e até mesmo a exuberância de Emily Blunt (capaz de repetir o encanto de Julie Andrews no papel principal), porém não chega a uma fração do que a obra original representa.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.