O RELATÓRIO – O mérito de reconhecer os erros [43 MICSP]
Ainda há muito para ser revelado sobre o que é feito pelo governo estadunidense contra o terrorismo desde 11 de setembro de 2001. O RELATÓRIO mostra uma investigação real que revelou, após um trabalho muito árduo, que a CIA usou a tortura como instrumento de interrogatório.
No longa, o agente Daniel Jones é designado pela Senadora Dianne Feinstein para apurar a destruição de fitas de interrogatório, que provariam que a CIA praticava tortura. Sem saber se conseguiria angariar as provas do fato – tampouco se, em caso positivo, ele seria publicado -, Daniel se debruça sobre a pesquisa, descobrindo muito mais do que esperava e tendo de enfrentar pressões políticas de todos os lados.
O roteiro de Scott Z. Burns, que também dirige o longa, é um pouco confuso no começo. O texto tem um desnecessário prólogo in media res (desnecessário porque adianta algo que não precisava ser adiantado) e faz saltos temporais grandes, criando uma desordem no início (de 2003 para 2007, depois para 2009 e assim por diante), que persiste com incontáveis flashbacks.
Nesse trânsito temporal, em determinado momento, a ordem dos fatos fica clara, com duas narrativas paralelas. A principal, do presente diegético, é protagonizada por Dan, que se divide entre duas atividades, a elaboração do relatório e a prestação de contas à Senadora Feinstein. A secundária, do pretérito, é a que expõe as descobertas do protagonista, mostrando eventos nos quais ele não esteve, mas que está descobrindo na investigação. É o uso por excelência da regra show, don’t tell: enquanto Dan pesquisa, o público enxerga o fato que ele está descobrindo.
Para aclarar a diferença das narrativas, além de o elenco ser diferente (Dan não convive com os funcionários da CIA que praticavam as atrocidades), Burns faz questão de apontar o ano em que cada cena se passa, além de distingui-las visualmente através do uso de filtro amarelo. Assim, quando há o filtro amarelo, está representado o fato investigado.
Interpretado pelo sempre eficiente Adam Driver, Dan é representado como um homem obsessivo, sem muita vida externamente ao trabalho. Salvo por algumas corridas ao ar livre, ele se transforma de prodígio a funcionário exemplar, ao menos até conseguir inimigos. Nesse caso, a consequência é óbvia, pois não era do interesse da CIA que seus podres fossem revelados. Para o inabalável Dan, é indiferente, pois o trabalho investigativo, apesar de hercúleo, não poderia cessar. Sua obsessão fica clara para todos, chegando a perder a noção do tempo, a tal ponto que a Senadora questiona se ele trabalha para ela ou para o relatório.
No papel dela está uma envelhecida Annette Bening, representando o freio racional ao ímpeto quase justiceiro de Dan. No bojo da investigação, surgem nomes de políticos importantes e questionamentos a órgãos consagrados. Enquanto o protagonista se abala com o que descobre – a mero título exemplificativo, uma “TMI” (técnica melhorada de interrogatório, na nomenclatura da CIA) consistente em reidratação retal, ela se preocupa com as consequências políticas, jurídicas e sociais dos acontecimentos – talvez fosse interessante mostrar mais o lado dela, inclusive. Ainda no elenco, é estranho ver Michael C. Hall em um papel tão pequeno – o mesmo pode ser dito de Corey Stoll, além do visivelmente subaproveitado Jon Hamm.
Scott Burns não abusa da violência gráfica, isto é, não alonga desnecessária e demasiadamente as cenas de tortura, mas também não deixa de mostrá-las. Quando aparece o título, ao invés de simplesmente constar “The report”, inteligentemente o diretor insere a palavra “torture” (“The torture report”) no meio, o que adquire duplo sentido: a descoberta das TMIs como tortura e o processo torturante a que Dan se submeteu. A mesma palavra é ocultada como se fosse riscada por uma caneta preta, o que novamente dialoga com o conteúdo do longa. Assinado por Ethan Tobman, o design de produção é bom se considerado o contexto do filme (político e sem grandes possibilidades estéticas), principalmente na sala onde Dan trabalha, que mais parece um bunker equipado com computadores. O local é bem aproveitado pela direção para demonstrar o progresso na investigação (e, de certa forma, a espiral em que o protagonista se encontra), através dos papéis nas paredes.
No encerramento, um deslize bem grande: “O relatório” se torna piegas no excesso patriota, um ufanismo clichê dos filmes do gênero. Não precisava ter o contreplongée no prédio do Senado, tampouco a citação de George Washington ou as frases de efeito. Com viés quase propagandista, o desfecho deixa claro que a produção não se limita a desnudar os erros da nação, preocupando-se em enaltecer a disposição de o fazer. Ou seja, ao invés de simplesmente reconhecer os erros, destaca o mérito desse reconhecimento.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.