“O PIANO” – A volatilidade humana
* Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).
Não é incomum que pessoas nutram sentimentos afetivos por objetos. Também não é incomum que objetos se tornem o elo material do afeto entre duas pessoas. Em O PIANO, a constante ressignificação do instrumento musical se torna uma metáfora para a volatilidade humana.
Ada McGrath parou de falar inexplicavelmente aos seis anos. Adulta e com uma filha criança, ela se muda para a Nova Zelândia (à época, colônia britânica) para se casar com Alisdair Stewart – um casamento arranjado com um homem que nem conhece, mas que tem boa condição financeira. A condição de muda não é fator complicador na vida de Ada, que afirma não se sentir muda graças ao seu piano. Na chegada ao novo lar, Alisdair se recusa a transportar o piano da praia para a casa. Quem se interessa pelo instrumento é George Baines, um negociador cujo objetivo é se aproximar de Ada.
A roteirista e diretora Jane Campion elabora um texto mordaz nas entrelinhas, sobretudo em três aspectos. O primeiro reside na fragilidade masculina diante da negativa feminina, traço natural da época capaz de justificar a frieza de Alisdair perante Ada, mas não tanto as investidas de Baines à força. É de se esperar que uma traição consiga abalar o psicológico de um marido naquele contexto, mas não que um terceiro busque estratégias das mais variadas para conquistar uma mulher, quase a qualquer custo. Por outro lado, o segundo aspecto está na força de Ada, que não assume a condição de vítima. À frieza de Alisdair ela responde de maneira idêntica (como na cena em que ele pede um beijo); à proposta de Baines, como se não fosse nada além de um acordo (não raras vezes estipulando cifras).
No subtexto (e em terceiro lugar) está uma crítica à mentalidade objetivista daquela cultura. Os maoris são vistos por Alisdair como seres inferiores, quase irracionais, com quem tenta negociar terras que, na sua equivocada ótica, não têm valor para eles (que “não fazem nada lá”). Ignora, porém, que ele mesmo se torna inferior na perspectiva de Ada, já que não valoriza minimamente a música (ou ao menos um instrumento musical pelo qual ela tem tamanho apreço). Por ser quase integrante dos maoris, Baines não pode ter interesse em aprender a tocar piano sem se tornar motivo de piada de outros homens. A fragilidade masculina tem forte associação com a brutalidade. Essas diferentes camadas entre as personagens traduz a maleabilidade da maneira como podem enxergar (ou seja, não necessariamente enxergam) o mundo.
Refratária a essa maleabilidade, Ada não se permite perceber a sensibilidade de Baines. Diversamente do seu próprio marido (e ainda que por motivos inicialmente obscuros), ele não se furta de levá-la à praia onde está o piano, mesmo sem saber o momento mágico que os dois estariam prestes a viver. Quando ela toca o instrumento, o enfeitiça de uma forma que ele não consegue explicar – muito menos resistir. Harvey Keitel transmite em Baines, com transparência, as duas facetas da personagem: a de negociador e a de amante. Ao se declarar “doente de tanto desejo”, aquela sucumbe a esta, apesar de esta existir somente em razão daquela. Acostumado com uma linguagem mais singela, a abordagem perante Ada é invasiva, o que permite a Holly Hunter explorar a ambiguidade da personagem.
As investidas de Baines são desconfortáveis; sua nudez, no início, surpreende por representar um lado mais carnal que romântico, a surpresa é resultado do meio pelo qual ela o conquistou (a música), que é mais etéreo que o estético. De todo modo, a luxúria surge como poesia tanto quanto a própria música, a nudez que a diretora expõe não é gratuita, mas desdobramento da sexualidade efervescente de duas pessoas insatisfeitas em suas atuais condições. O furo da meia é a maneira sutil de introduzir o tato como segunda dimensão de conexão entre Ada e Baines (além da música) – os sentidos, aliás, são as vias que permitem o tórrido romance, seja pelo cheiro da blusa de Ada, seja pela mão de Baines nas suas costas. Por ser o vilão do relacionamento, Sam Neill tem em Alisdair um voyeurista que fica desconfortável com o toque da esposa em uma região íntima.
O triângulo é ótimo, mas Anna Paquin consegue variar em Flora infantilidade e perspicácia. A atriz parece adulta quando traduz os sinais de sua mãe reclamando do “barco nojento”, encantando mesmo quando a candura de suas asas angelicais contradiz o ato que está praticando. Quando sua mãe toca piano, o feitiço da música é magnético até mesmo para ela, que, contudo, não compreende o luto simbólico de Ada, representado imageticamente pelos seus vestidos sempre escuros – por baixo dos quais, não à toa, estão roupas brancas. Dentro da pluralidade de sentidos está também a fotografia, com a iluminação amarelada da casa de Alisdair (transmitindo certa monotonia) e azul no caminho para a casa de Baines (cor mais alegre).
O piano de Ada é igualmente plurívoco. Quando ela aparece tocando-o pela primeira vez, irrompe sua narração voice over com um som agitado; na praia, a música tranquila é interrompida violentamente pela água do mar. Mesmo sendo um instrumento musical, o apego da protagonista faz dele quase um sujeito autônomo, que rapidamente se torna objeto, contudo, na negociação entre Alisdair e Baines. Mais à frente, quando ela toca suas teclas, é como se o piano tornasse Baines presente no local (razão pela qual ela olha para a porta). Ao final, sua relação com os dois (Baines e o piano) já não é a mesma. A trajetória de Ada reflete a constante ressignificação de tudo e todos, o que faz parte da vida dela e de qualquer pessoa.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.