“O PAGADOR DE PROMESSAS” (1962) – Bárbara
Em 1959, Dias Gomes escreveu uma de suas peças teatrais mais célebres. Em 1962, essa peça se tornou o primeiro (e até hoje único) filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Em 1963, foi indicado à categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar. Com esse currículo, O PAGADOR DE PROMESSAS entrou no panteão dos maiores filmes da história do cinema brasileiro.
Na história idealizada inicialmente por Gomes, Zé do Burro é um homem simples que viaja ao lado de sua mulher, Rosa, carregando uma pesada cruz de madeira no ombro até a Igreja de Santa Bárbara, em Salvador. O que ele quer é cumprir uma promessa, feita como agradecimento por seu melhor amigo, Nicolau, ter se recuperado de um acidente. Porém, quando o padre local descobre que a promessa foi feita a Iansã, em um terreiro de candomblé – além de Nicolau ser um burro -, proíbe Zé de adentrar no local com a cruz.
Anselmo Duarte foi o cineasta responsável por traduzir brilhantemente a linguagem teatral para a cinematográfica – com a ressalva das limitações tecnológicas da época, é claro, mas com a vantagem de usar como base um texto soberbo. Nos minutos iniciais, o espectador é introduzido em um contexto deveras sintético: planos-detalhes de instrumentos de percussão e as respectivas músicas (as pessoas aparecem apenas depois). Trata-se do momento em que Zé faz a promessa. Em seguida, ainda no primeiro ato, o protagonista começa a sua peregrinação, ainda em meio aos créditos do filme. Em uma sensacional sequência elíptica, a montagem de Carlos Coimbra mostra um pouco da penosíssima empreitada de Zé, que superou incontáveis intempéries para chegar à Igreja (a aridez do sertão nordestino, ventanias etc.). O único equívoco da montagem é no terço final, em que há um excesso de capoeira dispensável, já que sem função narrativa.
É também nessa sequência elíptica que, em planos abertos, o diretor aponta o quão grande é a cruz carregada por Zé. A extraordinária trilha musical de Gabriel Migliori igualmente se faz presente, dando tons épicos ao momento. Quase sempre extradiegética, a trilha funciona normalmente para fins de mero preenchimento – em todos os casos, contudo, acompanhando muito bem o ritmo da narrativa (como na cena em que o protagonista tenta abrir a porta da Igreja com a cruz). Mais uma vez, cabe mencionar a época em que o filme foi produzido: naquele período, músicas daquele estilo eram comuns para disfarçar a falta de ruídos (leia-se, a precariedade da edição de som), que apenas apareciam quando realmente necessário (como no tilintar dos sinos). No mais, as composições serviam para conduzir a emoção da cena (por exemplo, o suspense quando Bonitão entra no quarto com Rosa).
Enquanto “pagador de promessas”, Zé se revela extremamente rígido, não aceitando modificar os pormenores da tarefa (nem ao menos a almofada sugerida por Rosa, que evitaria que seu ombro ficasse em carne viva). Como pessoa, todavia, ele é bastante simples e até ingênuo: Leonardo Villar transita bem entre um fiel devoto e um homem bondoso, para quem a vida de Nicolau vale mais que seu patrimônio (o sorriso do ator ao mencionar a melhora do animal é de uma alegria contagiante). É bastante simbólico que o burro importe mais para ele do que muitas pessoas, incluindo a autoridade do amargo padre Olavo (Dionísio Azevedo) e, por vezes, sua própria esposa.
Rosa se sente negligenciada, de modo que Glória Menezes transmite muito bem o rancor que a personagem acumula (sem olvidar o ótimo sotaque nordestino criado pela atriz gaúcha radicada em São Paulo). Em uma primeira impressão, Rosa é uma esposa bastante fiel: “sou sua mulher, tenho que ir aonde você for”. Embora ela reclame das dores nos pés e do desconforto de não ter onde dormir, até então, nada levaria a crer que ela seria capaz de trair o marido. Tudo muda quando aparece Bonitão (Geraldo Del Rey), que se torna um segundo vilão da história.
Mesmo com poucas personagens, a narrativa consegue desenvolver subtramas interessantes. Rosa seria apenas uma acompanhante na tarefa hercúlea do marido, porém Bonitão cria um triângulo amoroso inesperado na trama (chama a atenção a facilidade com que ele engana Zé, inclusive ao satirizar Santo Antônio). Da mesma forma, Bonitão também tem suas subtramas: para além do interesse em Rosa, ele precisa lidar com Marli, de quem é rufião. Em síntese, todas as personagens têm várias camadas.
Dias Gomes escreveu uma obra extremamente ácida. Inicialmente, critica veementemente a intransigência da Igreja Católica – note-se que o padre exerce autoridade até mesmo perante um policial, o que é coerente com a fala do superior do padre segundo a qual seria “quase impossível separar religião de política”. Com o desenvolvimento da narrativa (e a progressão é bem perceptível), o repórter vivido com animação por Othon Bastos representa o sensacionalismo da imprensa, aumentando fatos e distorcendo-os, quando não criando o que não existe. É também significativa a fala do policial, segundo quem todos têm medo da imprensa. Em sua genialidade, o dramaturgo já abordava fake news muitos anos antes de a expressão se tornar popular. Por fim, ele expõe a natureza humana aproveitadora, já que todos, mesquinhamente, querem se beneficiar com o impasse de Zé perante o padre.
“O pagador de promessas” é uma obra simplesmente bárbara. Quando Zé do Burro chega na cidade carregando a cruz, as pessoas ao seu redor riem e zombam dele. O padre o impede de concretizar sua fé. A esposa fica seduzida por um homem cujos valores são absolutamente distintos dos dele. Desconhecidos se aproximam para tirar vantagem. Ora, não surpreende que seu melhor amigo seja um burro. Mas tampouco surpreende que a sociedade não tenha evoluído desde então.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.