“O ORGULHO” [FVCF/2018] – Praticamente um filme de princesa
Não é apenas a Disney que sabe fazer um filme de princesa. Em O ORGULHO, Neïla Salah é uma jovem que está se preparando para ser coroada (ou seja, inicia a faculdade de Direito em Assas, a primeira universidade jurídica na França). No primeiro dia de preparação, ela não se dá bem com o seu mentor (isto é, seu professor), Pierre Mazard. Com o tempo, ela descobre que seu príncipe (no sentido metafórico), Mounir, era quem sempre esteve ao seu lado (era seu amigo). O final? Mais do que óbvio, não? Do ponto de vista do plot, não é um filme de princesa, porém certamente o é do ponto de vista estrutural.
Daniel Auteuil faz de Pierre uma figura odiosa, apesar do carisma do ator. Quando ele exige mais educação dela (de uma maneira bem francesa, diga-se de passagem), a cultura com a qual ele é acostumado fala mais alto – o que, na visão dele, justifica seu pensamento. Sua personalidade é propositalmente detestável: se nega a ser “politicamente correto” e a falar “je suis Charlie” (referência mais que oportuna); anacrônico, é avesso a recursos tecnológicos; misógino, provoca uma mulher que sequer conhece; racista, faz piadas relativas à origem de Neïla (do tipo “seu cérebro é feito de couscous”). Porém, ele é insuperável na retórica – um ator qualquer não conseguiria discursar com aquela eloquência -, e é isso que ele pode transmitir à protagonista (que aprende até mesmo palavras novas).
Por sua vez, Camélia Jordana faz de Neïla uma jovem de personalidade (que enfrenta o professor), mas que custa a perceber que o ambiente que passa a frequentar lhe é (duplamente) desfavorável (já que mulher e de descendência árabe). Na defensiva, não é receptiva aos colegas que demonstram simpatia a ela. Entretanto, enfrenta tantas novidades que o contexto se torna estranhamente cômico – inclusive na presença de Pierre. Jordana é bastante autêntica nas suas expressões, da risada à raiva. Sendo ela a protagonista e sendo a trama prosaica, o incidente incitante é um concurso de retórica para o qual Pierre a prepara. Quanto a isso, é notável o esmero do roteiro ao demonstrar respaldo teórico ao mencionar Schopenhauer, Cícero e Aristóteles.
A metade inicial do filme é muito boa. No primeiro ato, Neïla é humilhada direta (na discussão) e indiretamente por Pierre (quando ele menciona a cultura árabe na aula). Os dois se odeiam, todavia a inteligência do script está em colocar o destino do professor nas mãos da aula (palavras dele). Na segunda metade do longa, contudo, há um gravíssimo problema de ritmo: a competição de retórica é acelerada em demasia, com elipses longas que evitam que o público absorva tudo que se passa (o progresso individual dela e as modificações nos relacionamentos interpessoais, em especial com Pierre e Mounir). O resultado é uma enorme sutura a cargo do espectador, já que a evolução pessoal de Neïla não é mostrada – sequer falada -, mas presumida. As fugazes cenas da jovem na companhia do tutor (jantando, estudando etc.) não suprem essa lacuna.
Outro problema do roteiro consiste na participação de Benjamin (Jean-Baptiste Lafarge, com pouquíssimo tempo de tela), colega da protagonista que sugere interesse afetivo nela – o que não passa da sugestão. A bem da verdade, o papel só existe para evitar o uso de deus ex machina em um ponto de virada: a informação fornecida por ele só faz sentido em razão da aproximação com a heroína, o que não significou praticamente nada em razão da abordagem superficial. Logo, o arco dramático de Neïla se resume a dois conflitos: o principal, relativo ao enfrentamento de Pierre (que praticamente a desafia), e outro, acessório, concernente ao relacionamento afetivo com Mounir. Um triângulo amoroso, por exemplo, não faria mal à unidimensionalidade do texto – e também permitiria que Yasin Houicha demonstrasse talento além do bom monólogo de Mounir.
Apesar dos defeitos mencionados, Yvan Attal, em seu terceiro trabalho como diretor e roteirista (trabalho aqui dividido com Noé Debré), demonstra bastante domínio técnico, ao menos dentro das possibilidades do longa. São vários os exemplos: quando Neïla entra na sala de aula, o establishing shot permite que o espectador compreenda a magnitude do seu atraso; quando Pierre cita Baudelaire em sua aula, a câmera movimenta-se em cento e oitenta graus seguido de um travelling para trás (mais uma vez esclarecendo a geografia da sala de aula); em um ponto de virada fundamental, ápice dramático de Neïla, primeiro aparece apenas metade de seu rosto, depois ela inteira, mas fora de foco (simbolizando o quão perdida ela está). Na penúltima cena, o two-shot em plano médio sem movimentação é magnífico.
O visual da heroína é quesito técnico que recebeu atenção da produção: no figurino, ela abandona o moletom de cores escuras, que combinava com os amigos, mas destoava dos colegas, para aceitar a crítica de Pierre e, a contragosto, vestir-se progressivamente de maneira mais formal (primeiro, camisa jeans, depois, uma camisa branca lisa e blusa preta, seguindo-se a camisas com estampas bem discretas e blazer, sempre nas mesmas cores); no penteado, seu cabelo ondulado é também dissonante dos colegas, sendo igualmente um fator de marginalização visual.
“O orgulho” parece ter deixado algumas peças de lado na ilha de montagem (como na cena do metrô, que parece terminar pela metade, ou nas cenas com Benjamin) – o que talvez explicasse seu ritmo ruim. O fato de ter uma trama previsível e clichê é desabonador, porém o fato de não ser maniqueísta é bastante elogiável: por exemplo, enquanto Neïla erra com Mounir (lado negativo), Pierre tem nela a chance de redenção (lado positivo). A mensagem transmitida é oportuna, mas seria um filme bem melhor sem um roteiro tão formulaico.
Filme assistido no Festival Varilux de Cinema Francês 2018.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.