“O MENU” – Hipocrisia disfarçada de diversão
Não é de hoje que muito se critica a intelectualização excessiva que tem se apossado do cinema recente. Possivelmente um sintoma da dependência voltada à significação daquilo que consumimos, ela tem determinado um processamento bastante racionalista dos códigos códigos compõem a linguagem cinematográfica. Se por um lado isso pode desembocar interessantes experimentos, outras escolhas podem levar à mera reprodução de discursos vazios e que em pouco se diferem dos reducionistas que tentam separar a cinematografia “de arte” daquela voltada ao “entretenimento”. Munido de um roteiro bastante interessante, O MENU resolve se desafiar por esse emblemático meio termo, mas alcança a contradição apesar dos acertos.
Obcecado pela carreira do misterioso chefe Julian Slowik, o entusiasta Tyler decide partir para um curioso evento culinário: uma noite de pratos, preparados pelo primeiro, hospedada em uma ilha paradisíaca. Acompanhado da inquieta Margot, ele divide a noite com diversos representantes da elite, que para além do seu status possuem outro traço comum: terem sido selecionados como parte de um horripilante plano de Slowik. Reunindo diferentes arquétipos em uma trama que costura o suspense ao comentário social, tem-se o ponto de partida de uma narrativa voltada a dissecar, através da comida, os diversos de relação que estabelecemos com a arte.
Nesse viés, é interessante como o diretor Mark Mylod segmenta a narrativa a partir das diferentes criações que compõem o cardápio, munido de montagens e planos detalhe que dissecam e exploram os diversos ingredientes por detrás das mesmas. Isso cria um senso curioso de aproximação entre uma linguagem mais publicitária – mas que funciona como um comentário de autoreconhecimento da artificialidade das imagens – e uma noção de se buscar aquilo que há por detrás desses produtos culturais.
Esse ideal último acaba funcionando em diferentes instâncias, seja em uma desconstrução mais objetiva das máscaras de aparência através das quais os tipos sociais vão se revelando, ou em um nível mais metalinguístico de reconhecimento das próprias ferramentas na condução da obra. É traçando essa linha que o projeto consegue harmonizar o seu tom cômico, pelo qual se desenha uma “comédia de costumes”, e expandir a discussão proposta para além do setor alimentar.
Essa confluência entre fatores se encaixa especialmente no desenvolvimento mútuo entre a protagonista de Anya Taylor-Joy e o ambíguo, mas intensamente carismático, “antagonista” interpretado por Ralph Fiennes. Representando uma falha para o cuidadoso planejamento de Slowik – que entende aquele conjunto de pessoas como um outro menu sobre o qual quer ter controle -, Margot deixa claro estar ali por alguma obrigação financeira, tendo sido contratada de última hora e orbitando os dois possíveis times aos quais ela pode pertencer.
Durante o processo, em que se forçada a decidir entre permanecer junto aos consumidores parasitas ou se juntar aos cozinheiros, ela questiona o seu próprio comportamento, internalizado, de objetificação, utilizada por aqueles ao seu redor como uma espécie de troféu. Isso corrobora para a lógica da obra que diz respeito a dissonância entre imagem e essência, sempre reconhecendo as camadas escondidas entre a perspectiva mais superficial de algo e aquilo realmente preservado em seu interior.
Seguindo dentro desse mesmo âmbito, merece menção o modo como, para além da reflexão crítica, esses dilemas são absorvidos pela personagem para alimentar uma urgência de libertação – libertação não apenas em relação ao terrível experimento em que se enfiou, mas também em relação aos próprios moldes, para além da tela, que a produção procura criticar. Perdida em meio a supostos intelectuais, empresários poderosos e críticos revestidos por sua influência egocêntrica, Margot luta arduamente para extrair alguma verdade, e restaurar a relação entre homem e alimento em sua forma mais prazerosa e primitiva.
É nesse ponto, todavia, que o filme passa a se desvencilhar de suas qualidades, especialmente na maneira como se define em tela. Apesar desse descontentamento se refletir bem em seus subtextos e arcos narrativos, são poucos os diferenciais linguísticos que afastam o projeto do arcabouço de conteúdos que ele deseja criticar.
Da fotografia escura e pouco saturada dos longas amaldiçoados pelo termo “pós-horror”, ao planejamento de um discurso até amplo pela vastidão das caricaturas que almeja criticar, entre outros aspectos, a falta de escolhas de decupagem que vão para além dos planos e contraplanos, ou a reprodução excessiva de simbolismos redundantes, configuram uma obra que reproduz aquilo que tanto denuncia.
Mesmo que essa emulação inicial seja necessária justamente para a posterior subversão de expectativas, o filme anseia por uma transformação de descarrego estilístico – e que em alguns momentos quase flerta com genêros mais “livres”, ainda que emule o slasher e o terror físico de forma bastante tímida – que nunca de fato se concretiza, o que o torna uma vítima de si mesma. Não suficiente, a maior precaridade que se manifesta nesse sentido está na literalidade com a qual o filme tanto se contenta, incapaz de ir além da potência de seus diálogos e de imagens que prezam por seu esmero visual em detrimento de seu propósito.
Isso transforma “O menu” em um longa temeroso de suas próprias capacidades, arquiteto de uma segurança própria que consegue permear e criticar mas apenas até certo ponto. Munido de boas personagens e cursando um tom convincente de toxicidade satírica, ele conquista por seus rostos principais e pela ideia central, ainda que jamais alcance a tradicionalidade potencial que defende estar tentando resgatar.