“O MELHOR ESTÁ POR VIR” – A magia do cinema
Na era da reprodução automática, é cabível o seguinte questionamento: por que filmar? Numa época em que quase tudo pode ser reproduzido por inteligência artificial, e todos os assuntos já foram discutidos, porque insistir nessa forma de captação do real? Trazendo a força de sua deliciosa caretice, O MELHOR ESTÁ POR VIR responde essa pergunta como poucos são capazes de fazê-lo.
À beira de um destino nuclear em seu casamento, o diretor Giovanni enfrenta sufocos para terminar o seu novo filme. Entre os bastidores de sua obra histórica – onde dirige um pseudo-romance inserido no contexto da ruína soviética – e a sua vida pessoal, ele luta para reencontrar seus propósitos.
Protagonizado pelo próprio diretor do projeto – como é de praxe em sua filmografia que acumula comédias e dramas -, Nanni Moretti da vida a um senhor complexado, perseguido pela necessidade de permanecer se expressando através do cinema. A protagonista de seu filme enxerga um subtexto que o cineasta é incapaz de perceber, a esposa produz a obra de outro realizador, e todos se recusam a renovar a tradição de assistir a “Lola Montès” (1955) na televisão da sala de estar. São retalhos como esse que concedem uma intimidade cômica ao microcosmo de Giovanni, mais interessante que qualquer produção que esteja conduzindo em set.
São as neuroses produzidas por essa atmosfera, inclusive, que se apossam das gravações do drama comunista, sugerindo uma sinfonia de intersecções entre a vida – ainda que também mediada pelas lentes de uma câmera – e a ficção. Propostas ingênuas de novos projetos – como a hilária sequência da piscina, por exemplo – fragmentam o fluxo da narrativa em função da consciência de Moretti, mais interessado em transmitir esses impulsos do que qualquer outra coisa.
Não que o filme se distancie de uma linearidade mais objetiva, mantendo a dificuldade de conclusão das filmagens seu fio condutor, mas são nessas inserções que ele revela a sua natureza mais pura. A ideia é homenagear o cinema em seu modus operantis de imortalidade, subversor da finitude de tudo que é concreto, como a vida do próprio senhor que conduz.
Ele se permite o direito de redescobrir a própria vida, andando de patinete, questionando a realização de um plano por mais de oito horas, dividido entre a objetivação neurótica de todas as suas ações e o desejo de se permitir ceder a um cinema de potências e impulsos. É um filme menos sobre a produção de Giovanni que a respeito da maneira como ele encara a passagem do tempo, entende o seu trabalho como uma extensão da própria vida e se distrai com as outras ideias que preferiria estar desenvolvendo.
Isso cria uma áurea fantástica sem que seja necessário o rompimento de uma abordagem realista, ainda que o desfecho, em uma ótima piada, se renda a magias que apenas o cinema é capaz de conjurar. Surgem passagens que parecem pouco acrescentar a continuidade objetiva do roteiro, em sua lógica de ação e consequência, mas manifestadas pela simples pulsão de explorar a câmera em suas possibilidades. Esteja na cena em que Moretti tenta descarregar seus estresses com embaixadinhas de futebol, ou na forma como ele insere músicas diegéticas para emular seu estado emocional, é um longa que se desfaz dentro de si mesmo, desenvolvendo Giovanni-Moretti pela intersecção com suas projeções do inconsciente.
Esse aspecto não diminui o mergulho sobre a psiquê do protagonista, que nem por isso se resume a esse encadeamento de situações absurdas e plásticas, autorizadas dentro do âmbito artístico. A ideia é que esses pequenos exercícios, que nem sempre se conectam, revelem fragmentos de sua imaginação, que transita entre diferentes universos narrativos, de possibilidades e desejos. Isso se faz particularmente claro na cena em que Giovanni se projeta para a cena de outro projeto em potencial, guiando o beijo romântico de dois jovens em uma sala de cinema. Sua mente é incapaz de se assentar em um único espaço, transitando com a mesma inocência de uma criança que começa a compreender a dimensão dos sonhos.
Dessa forma, “O melhor está por vir” busca a herança de um cinema menos racionalista, confiante em seus próprios pontos de distensão da narrativa mais lógica, e se permitindo exercitar a fantasia que apenas o audiovisual é capaz de fornecer. Traz assim uma magia que se manifesta não pela natureza paranormal dos elementos em si, mas sim pela forma como os mesmos ditam a inconsciência de um homem apaixonado pela própria perdição entre a vida e a imagem. Um lembrete do porquê os grandes ainda persistem em capturar a realidade em movimento.