“O MAURITANO” – Involução para a vingança
Em tempos pretéritos (Antiguidade, Medievo e parte da Idade Moderna, até o Iluminismo), o Direito Penal adotava a vingança como critério de aplicação de sanção por um crime. No Código de Hamurabi e na Lei das XII Tábuas, imperava a “vingança privada” (o próprio ofendido, sua família ou seu grupo social aplicavam pena a quem delinquir). Na “vingança divina” (como no Código de Manu), preceitos religiosos eram a lei que fundamentava a punição. Em seguida, a “vingança pública” era o sistema que permitia ao Estado, solidificado no poderio do soberano, massacrar arbitrariamente quem alegadamente cometesse um crime, pessoa que perdia quaisquer direitos. No filme O MAURITANO, um caso real mostra que, passados alguns séculos, a fase de vingança ainda não foi plenamente abolida.
Tendo retornado da Alemanha para a Mauritânia, Mohamedou Ould Slahi participa de uma festa com familiares e amigos quando é chamado por policiais para explicar sua relação com a Al Qaeda. Suspeito por ter participado da arquitetura dos ataques de 11 de setembro de 2001, “Mo” é preso em Guantánamo durante muito tempo até que a advogada Nancy Hollander se ofereça para impetrar um habeas corpus em seu nome, para que seja libertado. O governo estadunidense, porém, quer impor ao encarcerado a pena de morte, escolhendo para a acusação um procurador bastante motivado para ter êxito no escopo.
Não há novidades substanciais no filme, isto é, nada que já não tenha sido visto antes: uma história real em formato de drama de tribunal (embora a parte de tribunal seja ínfima) cujo conteúdo reflete os abusos perpetrados pelos EUA na “guerra contra o terrorismo”. Possivelmente por não ser uma inovação plena, o longa acaba sendo estruturalmente engessado. Na ótica do modelo actancial, o objeto é a liberdade de Slahi, sendo ele o sujeito (primeira apresentação), ajudado por Nancy, que é adjuvante (segunda apresentação) e tendo como oponente o procurador Stu (terceira apresentação). Os três polos de personagens aparecem em moldes óbvios e – o que é mais grave – unidimensionais, ao menos em parte.
O roteiro de M. B. Traven, Rory Haines e Sohrab Noshirvani peca por doses de impessoalidade em relação aos coadjuvantes, tornando-os impessoais. Mesmo com a interpretação da sempre ótima Jodie Foster, Nancy quase não libera sua fria racionalidade, parecendo uma máquina que repete o mesmo discurso – “eu defendo o direito da pessoa, não a pessoa”. É evidente que essa lição que o filme traz é fundamental, sobretudo quando, ainda no começo do século XXI, há pessoas que querem enterrar os direitos humanos e exumar a vingança privada. Entretanto, em termos narrativos, Nancy deixa a desejar, exceto em duas cenas seguintes ao plot twist, quando Foster transmite na personagem uma vontade mecânica de conter quaisquer ímpetos emotivos – uma castração emocional que, contudo, não impedia o script de ampliar os aspectos da vida da personagem.
Shailene Woodley tem participação pequena, mas importante porque Teri compensa, para o outro lado, a unidimensionalidade de Nancy, apresentando-se emocional e romântica em demasia (mesclando a crença do advogado de defesa em relação ao cliente, de um lado, com os direitos do cliente, de outro, equívoco comum pela sua aparente inexperiência, sobretudo quando comparada a Nancy). Quanto a Benedict Cumberbatch, embora Stu não tenha um arco narrativo próprio, a concepção da personagem é sólida o suficiente para fazer dele alguém com convicções fortes. A conexão dele ao caso é frágil, mas o roteiro insere pormenores que enriquecem o trabalho sóbrio de Cumberbatch (é o caso do discurso religioso, quando ele se declara “cristão e advogado”, ressignificado quando comparado à fala de Cathy colocando na acusação um amparo divino).
Mesmo com nomes de altíssimo calibre como Foster e Cumberbatch, é Tahar Rahim quem brilha. Amparado por uma trilha musical impactante e por recursos estilísticos que favorecem o drama do protagonista, Rahim compreende Mo como um ser humano de esperança inabalável (basta ver as conversas com o colega Marselha) a despeito do tratamento abominável a que é submetido em Guantánamo. O filme tem cenas manipulativas do ponto de vista emocional em razão da violência gráfica (que é de nível chocante e não indicada a públicos sensíveis), mas Rahim, fiel ao verdadeiro Slahi, faz do protagonista alguém cuja empatia é consequência não somente do sofrimento percebido, mas do bom humor e do carisma de uma pessoa cujas suspeitas não encontravam respaldo concreto.
É pesada a mão do diretor Kevin Macdonald, o que acaba combinando com o perfil denso do filme. Com duas linhas temporais, uma delas (a do passado) é delimitada pela razão de aspecto reduzida, de modo que o passado mais distante, de flashbacks, aparece com a imagem granulada (e, inicialmente, desfocada). A montagem é o que o filme tem de melhor: a montadora Justine Wright injeta intensidade nas sequências de montagem elíptica, que, por sua vez, é preparada por um ritmo crescente de montagem paralela (por exemplo, quando Stu e Nancy têm acesso a documentos essenciais para suas estratégias). Consciente da pesadíssima carga dramática do longa, Wright aproveita as cenas de alívio para também usar recursos técnicos (o match cut da bola de futebol).
Quando se fala em 11 de setembro, sabe-se que o assunto é demasiado delicado nos EUA. “O mauritano” não pisa em ovos ao abordá-lo, correndo um risco maior de romantizar um caso extraordinário (mas que não por isso tenha sido raro). Quando a obra se aproxima dos aspectos jurídico e político, é mais interessante do que quando se aventura na emoção fácil de cenas impressionantes. Teria sido melhor, nessa linha de raciocínio, insistir mais no desconhecimento sobre a culpabilidade de Slahi e apostar no trato desumano que recebeu do governo de um país que nem era o seu. Culpado ou inocente, Slahi não merece aquele tratamento porque pessoa alguma merece, pelo simples fato de ser pessoa. Neil pode ter razão ao afirmar que “alguém tem de pagar” pelo que ocorreu, mas a cobrança não pode ser em face de qualquer pessoa, tampouco de qualquer forma. Do contrário, a humanidade involui para a vingança, que não foi historicamente superada à toa.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.