“O MAL NÃO EXISTE” – Um extraordinário equilíbrio [47 MICSP]
* Filme vencedor do Grande Prêmio do Júri e do Prêmio da Crítica no Festival de Veneza.
A palavra-chave para O MAL NÃO EXISTE é equilíbrio. Isso porque equilíbrio, em um sentido, é o tema do filme, ou, mais precisamente, o equilíbrio ambiental. Em outro sentido, equilíbrio é uma palavra capaz de qualificar a direção do longa, que, sem excessos, consegue ser fiel à sua proposta, que, à sua maneira, é ácida na medida equilibrada.
Nos arredores de Tóquio, habita uma pequena comunidade que respeita a natureza e vive em harmonia. Esse modo de vida pode mudar com a chegada de uma empresa que pretende construir um acampamento de luxo para turistas. A situação pode ser ainda mais grave porque a construção causará impacto no fornecimento de água da região, ameaçando espécies animais e vegetais.
Escrito e dirigido por Ryûsuke Hamaguchi (de “Drive my car”), “O mal não existe” possui as características de seu cinema, sobretudo o marcante tom contemplativo. Os minutos iniciais do longa são um duradouro e inusitado plano-sequência em que árvores são filmadas de baixo para cima, demonstrando que o cineasta convida o público a contemplar a natureza que cerca as suas personagens. Poético, o plano é impulsionado pelo travelling feito com a câmera, exibindo as árvores e o céu nublado ao fundo, ao som de uma Leitmotiv intensa.
O corte surge apenas quando se ouve passos, momento em que o espectador é dessa vez convidado a colocar os pés no chão e conhecer melhor a paisagem invernal. Nesse sentido, a esplendorosa fotografia explora o branco da neve no chão e os tons frios do figurino de Takumi, o protagonista, e Hana, sua filha. Em uma posição antagônica, Takahashi traja uma jaqueta alaranjada, tonalidade que interrompe a frieza da fotografia, mais ao final, para representar perigo àquela região que tanto respeita o meio ambiente.
O tempo que Hamaguchi constrói em sua obra é um tempo naturalista, isto é, o tempo diegético é lento, jamais com pressa (mesmo no clímax). Quando Takumi corta lenha, a câmera faz um movimento de panorâmica enquanto ele carrega o material; ao terminar, ele fuma um cigarro e a câmera, ao longe, não se move. Muitas vezes, a montagem interrompe os planos apenas quando as personagens saem do campo, confirmando que não há vontade alguma em ser apressada. O desfecho consegue tirar o fôlego mesmo sem precisar acelerar, reafirmando que o trabalho do cineasta é cativante tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua forma.
Substancialmente, Hamaguchi elabora um senso de comunidade para os moradores da região, traduzindo a união deles (falando em uníssono e com palmas) como um equilíbrio tão sólido quanto o ambiental, representado, por exemplo, por uma água extremamente cristalina. O líder dos locais é Suruga, com Takumi como possível sucessor, dado seu conhecimento (ensina a filha sobre as espécies de árvores, orienta Kazuo quanto à wasabi selvagem que encontram etc.), sua temperança (ao conter um homem que se exalta na reunião) e sua disposição em ajudar, conversando com os funcionários da empresa mesmo sabendo que eles não têm poder decisório (ou criativo, ou de qualquer outro tipo) algum.
A empresa que exerce a função de antagonista é representada por três personagens. A primeira, mais vilanesca, é o chefe da dupla do briefing, sendo o papel mais distante propositalmente. O chefe não se desloca presencialmente para as reuniões, participa por uma breve videoconferência e trata os problemas como questões menores de fácil solução – desde que não prejudique o orçamento, é claro. Seus funcionários, Takahashi e Mayuzumi, são partícipes dos melhores diálogos do brilhante e afiado roteiro de Hamaguchi. Sozinhos, os dois falam sobre banalidades de maneira deliciosamente cômica; junto aos locais, deixam transparecer suas diferenças de pensamento e modo de agir. A cena do briefing, bastante longa, é divertidíssima, escancarando que Takahashi, mais fiel à empresa, foi um enviado a título formal, completamente despreparado e jogado aos leões para, se necessário, passar vergonha. Mais esperta – e equilibrada -, Mayuzumi enxerga a situação como é na realidade e a aceita, amenizando o vexame.
Com frases como “um pouquinho de poluição não vai poluir a água” e “não dá para sair na frente dos rivais se você almeja a perfeição”, o chefe da dupla deixa clara a ausência de equilíbrio em sua atuação. Não à toa, Takumi se vê diante de um cenário angustiante quando o equilíbrio se esvai. Diferentemente de outros da sua cinebiografia, Hamaguchi foge um pouco do existencialismo em “O mal não existe”, porém ainda remanescem traços dessa característica. As personagens, mesmo pouco aprofundadas (comparando a outros filmes), revelam muito de si em seus atos e falas (a carência de Takahashi com os apps, a incredulidade, quase uma misantropia, de Mayuzumi com as críticas às pessoas que usam os apps, o comportamento constantemente monotônico de Takumi…). Mais do que isso, o equilíbrio ambiental pregado na obra, voltada a uma reprovação do lucro em detrimento do meio ambiente, serve como metáfora mais ampla da humanidade. Logo, o tema do longa pode ser comum, sua abordagem, contudo, não é nada ordinária.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.