“O LIMITE DA TRAIÇÃO” – Rascunho de melodrama
Filmes sobre julgamentos em tribunais despertam alguma atenção por convidarem aqueles que lhes assistem a desvendar o caso e a acompanhar os embates entre defesa e promotoria. Nessa linha, destacam-se títulos como “Doze homens e uma sentença“, “As duas faces de um crime” e “Testemunha de acusação” com resultados extremamente opostos aos de O LIMITE DA TRAIÇÃO, produção original Netflix. O projeto, produzido, escrito e dirigido por Tyler Perry, nem deveria estar próximo de exemplares tão bem-sucedidos com os citados anteriormente, tamanha é sua incapacidade de lidar com o estilo que almeja.
A diegese estabelece rapidamente o que poderia ser um mistério/drama investigativo e jurídico tradicional. Jasmine é uma advogada iniciante que recebe de seu chefe Rory um caso em que deve conseguir sem maiores sobressaltos um acordo com a acusação. Estudando o material e indo até o presídio para conhecer a cliente, se depara com a história de Grace, indiciada pelo assassinato do marido Shannon. Entretanto, a defensora desconfia de que a culpa pode não ser tão certa quanto todos julgavam até então.
A despeito das aparências, a obra não se desenvolve como sugeria, não adota o ponto de vista de Grace e acaba enfraquecida por relegar à mulher presa uma posição coadjuvante dentro de sua própria história. O primeiro ato segue Jasmine, uma personagem desinteressante, que possui um conflito nada sutil, vivida por Bresha Webb, carregada de excessos novelescos: ela é novata e insegura na defesa de clientes, pois é conhecida apenas por fazer acordos, e se caracteriza como alguém que comete erros infantis (nada mais evidente do que pedir para Grace assinar um documento sem entregar uma caneta). Além disso, todas as dinâmicas com o marido policial, os colegas de advocacia e o superior apresentam um didatismo ilustrativo de como essa interações possuem o exagero de um melodrama desequilibrado e incompatível com os arcos narrativos.
Ser um melodrama por si só não é um defeito, desde que seja concebido com qualidade. É isso que falta às escolhas de Tyler Perry quando não confere função apropriada a uma trilha sonora muito presente e intrusiva, composta por acordes que evocam emoção e tensão a partir da manipulação das reações dos espectadores sem cuidado – o efeito, portanto, é ser redundante em relação ao que já era informado pelas imagens. Quando as sensações não são forjadas por truques baratos, o roteiro lança elementos sem qualquer serventia para a trama: por que, no primeiro encontro entre Grace e Jasmine, a protagonista derruba suas anotações e vê a entrada de sua cliente do chão? E por que a insistência do chefe em conseguir um acordo sem julgamento insinua segundas intenções, se isso nunca é trabalhado?
A suposição de que a narrativa melhoraria caso Grace estivesse com o protagonismo ganha força no momento em que a personagem relata o que aconteceu a ela no passado e sua versão para a morte do marido. Tais passagens são entrecruzadas com flashbacks daquele período narrados em voice over pela própria mulher e assumem um viés melodramático mais bem resolvido. Primeiramente, porque a jornada de término de seu casamento mais antigo e início de um novo com outras decepções combina com o estilo. Em seguida, porque a construção dramatúrgica (trilha sonora, narração e direção) estabelece uma progressão coerente de desesperança e desespero até um forte clímax, beneficiada também pela atuação segura de Crystal R. Fox.
Tematicamente, esse segmento também justifica o melodrama ao buscar os conflitos enfrentados pela personagem. A condução de seus relacionamentos levanta as questões sobre o lugar dos idosos na sociedade e a imagem atribuída a eles pelos demais indivíduos. Desse modo, ela se questiona se poderia ainda se envolver amorosamente na sua idade após tanto tempo casada, resiste às investidas do elegante e jovem Shannon (a pergunta que se faz, “por que eu?”, exemplifica as dúvidas se conseguiria despertar o interesse de alguém mais novo) e recebe apoio da amiga Sarah na busca pela felicidade. À medida que a produção se desenrola, esse tema complexo se direciona para camadas e resoluções menos intrincadas, mas igualmente sintonizadas a ele, que revelam dimensões perigosas para a população mais velha – ainda que possa decepcionar alguns espectadores.
Após experimentar um bloco mais coeso na narrativa, a fragilidade inicial retorna para a metade final do segundo ato em diante. A caracterização da advogada volta a pesar a mão na inverossimilhança, chegando ao ponto de se tornar caricatural (os erros cometidos por ela no tribunal abusam da paciência do público e não se justificam pela inexperiência). O melodrama é substituído por uma sucessão de tons diferentes, passando pelo drama jurídico, pelo suspense de flertes com o terror e a crítica social, sem tanto timing de construção e articulação, dada a velocidade com que um abre espaço para o outro. E a costura entre essas abordagens é tentada através de reviravoltas que soam forçadas, expõem furos de roteiro e são mal encenadas – os confrontos físicos do clímax, por exemplo, são coreografados infantilmente ou mal decupados.
Ao abraçar mais de uma função (ele interpreta o chefe da protagonista), Tyler Perry tem dificuldade de trabalhar e desenvolver os estilos e as surpresas que pretendia. Tudo aquilo que cerca o processo judicial é superficial, quando não caricatural, na figura de Jasmine, e o drama é inconstante e mal inserido em passagens da narrativa. Se, ao menos, uma trama organizada fosse contada, seria possível identificar valores positivos e não plot twists “espertinhos” que conformam um rascunho de melodrama.
Um resultado de todos os filmes que já viu.