O JOVEM AHMED – A grandeza está na modéstia [43 MICSP]
Não existe idade para que uma pessoa se torne fanática pela sua religião. O JOVEM AHMED une a adolescência, fase, como se sabe, de muitas mudanças, com o fanatismo religioso crescente. O resultado dessa equação é ótimo.
No filme belgo-francês, Ahmed é um menino muçulmano de treze anos cada vez mais devoto ao islã. Tendo o imã da mesquita que frequenta como guia, passa a reprovar todos ao seu redor por serem infiéis, principalmente a professora. Revoltado por ela ensinar árabe sem utilizar o Alcorão, ele decide tomar medidas extremas.
A palavra “extrema” se encaixa como uma luva para a conduta do protagonista. Nas suas palavras, “um muçulmano de verdade não aperta a mão de uma mulher” – é justamente esse o ponto de partida para o confronto com a professora. Para ele, a mãe não tem autoridade suficiente (já que é mulher) e pouco importa a presença do pai, pois ele se humilhava ao permitir que a esposa e a filha não usassem hijab. Norteado pelo imã, ele se torna inflexível em seus atos e julga todos ao seu redor por não agirem como ele.
O roteiro de Luc Dardenne e Jean-Pierre Dardenne (que também dirigem e produzem a película) parece pregar uma peça com o garoto quando o imã pede para ele mentir por um bem maior. Nesse momento, fica claro que o que ele enxerga é a verdade que considera mais conveniente, isto é, admite flexibilizar a interpretação do livro sagrado de acordo com o que convém. Igualmente, quando a professora se propõe a debater o Alcorão com ele – especificamente no que se refere ao convívio do islamismo com outras religiões -, a saída de que não pode lê-lo com uma mulher parece oportuna em demasia (até porque a discussão, a rigor, já tinha começado).
Ou seja, Ahmed quer criar um mundo em que todos seguem a sua religião à risca, de modo que eventuais desvios só se justificam se guardada alguma coerência com uma finalidade maior. É por isso que quem ensina a língua sagrada fora do Alcorão está praticando blasfêmia e merece morrer (na sua ótica tacanha, evidentemente). Quando surge um questionamento provocador, ele não consegue dar uma saída satisfatória: se o árabe só pode ser aprendido mediante o uso do Alcorão, como podem os alunos aprender palavras que estão fora do livro sagrado? A alternativa é sair pela tangente: quem quer aprender por vias alternativas está na verdade agindo para que o islamismo desapareça, “infectando-o” com “judeus e cruzados”. É uma verdadeira lavagem cerebral praticamente incontornável.
Quando a questão da professora parece pacificada, o inteligente roteiro insere uma nova variável: Louise. Como reagem os hormônios do garoto? A trama se divide entre momentos cômicos e alguma tensão, o que é resultado da atuação convincente de Idir Ben Addi na pele de Ahmed. Ironicamente, suas expressões tênues fazem com que ele se torne uma incógnita para o público, que não sabe se ele está revendo suas ideias ou planejando uma agressão. A despeito de suas ideias opressoras, ele é apenas um garoto ainda em processo de formação – essa também é a lógica da sra. Inès (Myriem Akheddiou, razoável), que tem muita esperança na melhora do aluno.
Os Dardenne são firmes ao imprimir naturalismo à película, evitando cortes desnecessários e filmando em planos fechados e com pouca profundidade de campo. A geografia da cena depende sempre do protagonista, que é quase onipresente. Assim, os cenários raramente aparecem como um todo, ficando dependentes da movimentação de Ahmed – justificado, assim, o uso de câmera na mão. Para que a obra fique coesa, não há músicas extradiegéticas, cabendo ao espectador deixar-se levar pela trama sem ferramentas cinematográficas rebuscadas. Na única oportunidade em que o filme tenta ir além da sua proposta, acaba errando escancaradamente (é o caso do desfecho, claramente inverossímil da maneira com que ocorre).
É possível enxergar “O jovem Ahmed” como um filme menor em razão do minimalismo, presente tanto na narrativa quanto na estética do longa. Essa, porém, é uma conclusão simplista sobre um filme cuja grandeza reside justamente na modéstia da proposta, já que a simples união da adolescência ao radicalismo religioso já desemboca em uma efervescência provocativa. Quando o público é colocado ao lado de um protagonista antipático (radical, agressivo, revoltado, intransigente), a inteligência da obra é ainda maior: ele só pode ser compreendido se o mundo que ele enxerga é visto o mais próximo possível da sua perspectiva. Entregando pouco, os Dardenne abrem espaço para muito.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.