“O ILUMINADO” – Febre da cabana
A expressão “febre da cabana” se refere à claustrofobia e aos transtornos psicológicos provocados quando pessoas ficam isoladas em algum espaço restrito por muito tempo. É essa a perspectiva de O ILUMINADO, clássico do terror comandado por Stanley Kubrick em 1980, ao definir o isolamento e a solidão como eixos narrativos. Por conseguinte, são tais sensações que que produzem as reações características do gênero e aterrorizam os espectadores, não sendo refém de convenções ou clichês.
Adaptado do livro homônimo de Stephen King, o filme se passa nas montanhas do Colorado. Jack Torrance leva sua esposa Wendy e seu filho Danny para lá após conseguir o emprego de zelador na temporada de inverno. O homem espera curar um bloqueio criativo e, assim, escrever um novo trabalho, porém a construção esconde segredos macabros. À medida que os dias passam, a criança é atormentada por visões perturbadoras e o pai se converte em maníaco homicida que ameaça mortalmente os outros dois. O material original é apenas uma inspiração para o cineasta fazer sua própria versão da história com algumas mudanças e liberdades poéticas, algo que desagradou consideravelmente o autor.
Na sequência de abertura, o primeiro sentido para o isolamento é geográfico: os três personagens viajam de carro por uma estrada afastada dos grandes centros e sem qualquer outro veículo por perto, embalados por uma trilha sonora sombria e de acordes estridentes. As próprias condições do entorno do hotel quando ali chegam revelam as dificuldades de comunicação com o exterior, exemplificadas pelas intensas nevascas e pelos problemas técnicos nos aparelhos de rádio e telefone. No interior do local, essa sensação advém da largura e da grandiosidade dos aposentos, destacadas pelos planos gerais que oprimem a família, e das constantes movimentações de Danny no velocípede por corredores vazios filmados com uma steadicam.
Paralelamente a isso, existe também uma separação emocional de indivíduos solitários cada um à sua maneira. Jack busca com muito prazer o silêncio e o afastamento social para escrever um livro, pouco se importando com sua esposa e filho; além de agir estranhamente como quando sorri durante uma conversa sobre canibalismo com a criança. Danny tem um dom especial (ele é um “iluminado”) que o diferencia dos demais e lhe dá habilidades psíquicas. Wendy parece sempre estar solitária, ainda que interaja com o menino, em razão de um casamento estranho sem afeto, momentos felizes compartilhados e “química” decorrente da escolha de Jack Nicholson e Shelley Duvall para interpretar o casal protagonista.
Seguindo a mesma lógica, o desenvolvimento dos personagens acentua a impressão de uma “febre da cabana” e ainda impõe tensão ao filme. O pai é afetado pelo passado sobrenatural do hotel e embarca em uma jornada de deterioração da sanidade, se transformando em uma figura aterradora – Jack Nicholson manifesta a confusão mental, a aflição e a fúria enlouquecida em escala crescente através dos trejeitos físicos e da expressão facial marcante. O filho também sofre com o mal do lugar, vivenciando a violência ocorrida sob a forma do medo que sente e dos perigos que o cercam. A mãe é a que menos evolui (curiosamente, está solitária até nesse ponto) porque somente evoca os problemas familiares causados por Jack e se enfraquece por conta do roteiro e da direção, que a deixam apenas vulnerável correndo e gritando de forma afetada.
Não se concentrando somente na estrutura dramática poderosa, Stanley Kubrick também trabalha o sentimento de tensão resultante do terror. Porém, não no estilo comercial de jump scares e de ritmo acelerado, pois o diretor cria outros mecanismos capazes de estabelecer uma atmosfera constantemente assustadora. Apresenta-se discretamente o conjunto de facas na cozinha que, mais tarde, assume uma função importante; utiliza-se expressivamente um labirinto como mais uma ameaça de isolamento e morte – mãe e filho andam por ele enquanto o pai vê a maquete do ambiente com seus familiares ali inseridos em miniatura -; cria-se suspense a partir do deslocamento de Danny pelos corredores sem saber o que pode encontrar, inclusive deixando surpresas nas curvas à direita ou à esquerda; e substituem-se os ruídos típicos dos sustos fáceis por um frequência sonora continuamente estridente e opressiva para tornar momentos específicos ainda mais angustiantes.
Além de tudo isso, a produção igualmente gravou seu nome na história do cinema graças às set pieces memoráveis até hoje lembradas, comentadas e admiradas. Dentre elas, estão: o elevador que abre suas portas para a saída de litros de sangue; a cena com palavra “redrum” escrita no espelho; as aparições das meninas gêmeas; a mulher misteriosa na banheira; e a icônica cena do “Here is Johnny!” dita por Jack Nicholson. Pode não haver muitas mortes nas quase duas horas de duração, mas há uma inquietação ininterrupta muito bem pensada e construída para tornar o hotel Overlook um símbolo da maldade humana.
Stephen King pode até não gostar da adaptação de seu livro para a tela grande. A dinâmica e a caracterização dos personagens são os aspectos que mais incomodam o escritor (em parte com alguma razão no que se refere a Wendy, uma personagem mal trabalhada por toda a narrativa), porém não justificariam a negação de suas qualidades e de sua importância cinematográficas. “O Iluminado” é a demonstração de como Stanley Kubrick é um gênio nos mais variados estilos, adaptando-se às características dos filmes de guerra, roubo, ficção científica, comédia ou, no caso terror e ainda imprimindo sua marca autoral em cada um. Nesse projeto de 1980, uma fusão entre cinema de gênero e o desenvolvimento do isolamento, da solidão e do horror em nos ver perseguidos por quem deveria nos proteger.
Um resultado de todos os filmes que já viu.