“O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA” – Quando a lenda vira um fato, publique a lenda
Uma das falas mais impactantes de O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA é: “aqui é o Oeste, senhor. Quando a lenda vira um fato, publique a lenda”. No contexto da cena, uma personagem narra um evento como ele ficou conhecido (a lenda), explicando que a realidade (o fato) é diferente. Ainda que a resposta obtida tenha sido a preferibilidade da lenda face ao fato (ao menos no Velho Oeste), a coexistência de ambos é reflexo de uma realidade muito mais complexa do que aparenta.
Ransom Stoddard é um senador que vai à cidade de Shinbone para o funeral de seu amigo Tom Doniphon. Ao ser entrevistado por um repórter, Ransom revela que conheceu Tom quando era advogado recém-formado, mesma época em que se defrontou com o perigoso facínora Liberty Valance.
A escolha de James Stewart e John Wayne para encabeçar o elenco é irrepreensível. À época (1962) já com bastante renome, Stewart e Wayne aproveitam as personas que consagraram em seus papéis para fazer de Ransom e Tom, respectivamente, dois opostos que se unem contra um inimigo em comum – o detestável Liberty interpretado muito bem por Lee Marvin. A contraposição das visões de mundo de Ransom e Tom é elemento de muita relevância na trama, pois é o que forma o fio condutor narrativo: enquanto o primeiro defende a imposição “da lei e da ordem” contra o facínora, o segundo insiste que “aqui (no Oeste) não é assim”. À primeira vista, o educado, culto e letrado Ransom jamais abandonaria sua confiança no sistema para se subjugar à lei do Oeste, ao passo que Tom, bruto e seguro de si, não estaria disposto a se colocar em risco por outrem. Esta, porém, é a lenda, pois o fato que há por trás disso é bem mais complexo: Tom pode parecer áspero e insensível como um vaqueiro tradicional (daí porque a escolha de Wayne foi certeira), mas seu senso de justiça não permite que Ransom seja maltratado por Liberty; Ransom pode parecer o extremo da polidez (ninguém melhor que Stewart para o papel), mas em algum momento acaba sendo convencido que alguém como Liberty não pode ser vencido pelos meios nos quais até então confiava.
A dupla é unida por Liberty no que compõe a trama principal, porém existe uma subtrama importante que é o triângulo amoroso formado entre eles e Hallie, vivida com vigor (e certa brabeza) por Vera Miles. Tom tenta protegê-la por enxergá-la como vulnerável, circunstância que comprova que a brutalidade do cowboy não é sua única faceta – são várias as suas falas e atitudes que demonstram que, perante ela, frágil na realidade é ele. Por outro lado, Hallie não apenas rejeita a proteção de Tom (“você não é meu dono!”) como enxerga Ransom como alguém que precisa do mesmo tipo de proteção (nesse caso, pedindo a ajuda de Tom para tal). Não há unidimensionalidade em nenhuma das personagens do roteiro de James Warner Bellah e Willis Goldbeck (escrito a partir da história de Dorothy M. Johnson).
O que enriquece o texto é o fato de o diretor John Ford explorar muito bem outros gêneros dentro do western. É claro que “O homem que matou o facínora” é um filme de faroeste, mas isso não significa que a linguagem deve ficar limitada a ele. Além do mencionado romance, os minutos iniciais são de suspense e há surpreendentes personagens de alívio cômico. O suspense ocorre sobretudo nos minutos iniciais, quando Ransom chega à cidade e o mistério envolvendo a sua chegada é transmitido pela trilha sonora (após a música e o som intradiegético do trem, quase não há som), assim como quando ele adota um semblante sério ao se aproximar do caixão de Tom (até então, um desconhecido para o espectador). Por sua vez, a comédia rende momentos deliciosos na película, aproveitando-se principalmente de Link Appleyard (Andy Devine), uma autoridade local que tem medo de cumprir seus afazeres e quer aparecer em locais públicos sem ser percebido (justamente para não ser demandado), e de Dutton Peabody (Edmond O’Brien), um jornalista que se desespera por não poder ingerir álcool durante um evento político. Impressiona ainda como o cineasta é delicado para traduzir imageticamente muito mais do que está na superfície do western: o cacto não é apenas representação da aridez local, sendo ressignificado como manifestação de afeto; quando Ransom sai à noite enfrentar Liberty, ele permanece vestido de avental, símbolo de uma masculinidade pouco comum naquele lugar.
O longa de Ford tem no conflito de visões o seu tema principal, mas existem dois outros que lhe agregam novas camadas e que com ele se relacionam intimamente. O primeiro é o papel da imprensa, assunto tratado com sobriedade, sem prejuízo de ironias episódicas, por exemplo na conduta de Peabody no evento de escolha dos delegados e na sua empolgação precoce ao imaginar um casamento entre Tom e Hallie. Por outro lado, seu olhar é respeitoso, já que Peabody é reconhecido por Ransom como um bom jornalista, da mesma forma que Scott, outro representante da imprensa, assume um dever perante o público e para isso se dispõe a enfrentar um senador. O segundo tema é a política, em uma abordagem temporal de crítica sutil, mas consideravelmente ácida. No presente diegético, Ransom é um senador cujo ego é inflado pela procura dos jornalistas (a alegria na expressão de Stewart é uma censura à egolatria dos políticos); no pretérito diegético, as lições do advogado sobre política representam alguma medida de saudosismo e de defesa ao retorno às noções mais basilares de uma democracia. É um olhar tipicamente conservador segundo o qual o passado é romantizado, sugerindo que a solução para os problemas está nas tradições; algo não explícito, mas perceptível ao se olhar com atenção.
Ford teria se tornado republicano graças à influência de Wayne e Stewart – eis a lenda -; ideias conservadoras combinam com o viés político que o cineasta imprimiu em sua obra – eis o fato. Ambos são públicos, ainda que não incontroversos, tal qual requer a política e tal qual pretende a imprensa.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.