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“O HOMEM DE ARGILA” – Objetos do olhar [MFFF 2025]

A quem pertence o olhar no cinema? Muito já se discutiu sobre a questão, principalmente graças às contribuições das teorias feministas. O ponto de vista da câmera e do protagonista tendem a assumir, no cinema comercial, uma hegemonia masculina que fundamenta seu prazer no controle possibilitado por essa posição e pela objetificação das personagens femininas sob o objeto do olhar. Algumas obras feitas por mulheres problematizam a temática ao pensar diferentes identidades de gênero e de laços pessoais, como “Retrato de uma jovem em chamas“. É o caso também de O HOMEM DE ARGILA.

(© Filmicca / Divulgação)

Raphael mora com a mãe em um pavilhão no vasto patrimônio do castelo do qual é guardião. Desde que os proprietários morreram, tem uma existência monótona cuidando do local. Ainda assim, sabe que sua aparência física (o corpo imponente, o peso acima da média, o envelhecimento dos sessenta anos e a perda de um dos olhos) pode afastá-lo do convívio respeitoso com outras pessoas. Tudo muda de figura quando Garance, herdeira da propriedade, retorna disposta a produzir mais uma obra de arte para sua exposição.

Embora a narrativa se inicie mostrando a rotina de Raphael, o olhar curioso se direciona para Garance. Tudo ligado à mulher parece despertar curiosidade: a chegada abrupta de noite sem bagagens, a discussão misteriosa em uma ligação telefônica, a overdose de medicamentos e bebidas e os trabalhos incomuns da artista. A imprensa tem grande interesse por ela e divulga suas obras com lágrimas derramadas em momentos diversos de sua vida e intervenções no próprio corpo como tatuagens em exposição. O guardião não fica imune a certo voyeurismo porque observa a mulher em um misto de cuidado profissional e sentimento platônico. A diretora Anaïs Tellenne evidencia isso através de sequências que fazem a perspectiva da câmera assumir o ponto de vista voyeur de Raphael, que contempla Garance deitada seminua na cama ou durante o trabalho estando no local ou olhando pela fresta da porta.

De forma inicial, tudo leva a crer que novamente a mulher seria o objeto do olhar. Porém, a cineasta está disposta a reformular a abordagem mais comum. Enquanto Raphael julga ser o único a observar, Garance fazia o mesmo ao deter o controle sobre o olhar em muitas situações. Em uma sequência construída sob a lógica do suspense, ele descobre vários rascunhos de seu rosto ou corpo produzidos pela mulher para uma obra de arte. Com essa escolha, a narrativa passa a discutir como o homem não consegue se ver como uma figura exibicionista e objeto do olhar de uma mulher, por isso experimenta essa condição como uma ameaça. A partir daí, desenvolve-se o elemento central que justifica o título da produção: a proposta de fazer um homem de argila sob os moldes corporais do guardião. Nesse momento, Anaïs Tellenne coloca em evidência questões muito interessantes, como a transformação de Raphael em musa inspiradora para a artista e o questionamento do padrão estético socialmente imposto. Então, o objeto do olhar e do interesse dos espectadores precisa mudar.

O funcionário da propriedade é o protagonista e centro nervoso da trama, o que deixa a caracterização do personagem e o trabalho de composição de Raphaël Thiéry no primeiro plano. Ele pode se dedicar às obrigações profissionais com empenho, mas não consegue vivenciar plenamente suas emoções nem se sentir amado. Mesmo que a relação com a mãe não seja agressiva, não conta com momentos de ternura. O relacionamento sexual com uma vizinha ocorre muito mais para satisfazer os fetiches dela e para atender as necessidades fisiológicas dele de maneira quase robótica. Por isso, são palpáveis a solidão e a falta de carinho que Raphael sente. O ator demonstra muito bem as lacunas em sua vida através de expressões faciais discretas e expressivas, como o olhar de desejo contido por Garance e o ganho de confiança pela valorização dada a ele pela artista. É curioso também que o tema do ponto de vista seja reforçado pelo fato de Raphael ser caolho e pesquisar o formato do olho que deseja colocar após cirurgia, mais uma demonstração de que a imagem apresentada e interpretada pelo mundo exterior é muito importante para os conflitos dramáticos.

Geralmente, costuma-se afirmar que colocar alguém como objeto de olhar no cinema pode ser negativo. Objetificar, estereotipar, violar o corpo, retirar sua agência individual e outros desdobramentos podem ser aventados nessa visão. A diretora não corrobora com a perspectiva anterior e encontra brechas para pensar na condição de objeto de olhar sob possibilidades mais agradáveis. Raphael é um indivíduo marginalizado e discriminado por sua aparência física e idade, que não recebe tão facilmente sinais de respeito e valorização. Quando Garance o convida para ser musa de uma obra de arte, ele passa a ser enaltecido e admirado como nunca havia sido até então. No caso de alguém de alguém desrespeitado como ele, servir como inspiração e estar sob o escrutínio de artistas e do público reorienta seu lugar no mundo. Esteticamente, o protagonista é tratado, nos seus próprios termos proferidos para a mãe, como uma paisagem por conta da sequência de abertura. Um plano fechado sobre a entrada de um castelo cercado pela natureza dá a entender que a câmera enquadra o cenário das ações, até a abertura do quadro revelar ser uma pintura colocada no quadro de Raphael.

Na posição de objeto de olhar da arte e da escultora, o personagem nutre uma paixão platônica por Garance. Como não criar uma emoção tão forte por alguém que o elevou a uma condição de respeito e consideração diferentemente de outras pessoas de seu convívio? O amor contido que não pode ser revelado por conta da hierarquia social e profissional ressoa na questão do olhar a partir das escolhas formais da diretora. O desejo carnal se manifesta na cena em que vemos o movimento das mãos da artista sobre o corpo da obra em argila, sendo seguido pelo prazer individual de Raphael em outra cena. O ciúme implícito transborda pela postura do homem que reage negativamente quando vê a chegada do agente de Garance, como se o direito de estar sob o olhar da mulher pertencesse somente a ele. O desagrado do guardião ao estar exposto a um grupo de profissionais que trabalha com a artista aparece na deformação do efeito visual da lente utilizada para a fotografia. Os três exemplos citados demonstram que o filme consegue abordar muito bem relações complexas a partir das sutilezas do não dito.

O homem de argila” lembra, de certo modo, “Retrato de uma jovem em chamas” apesar das particularidades de cada um. O denominador em comum está na interação sob muitos níveis entre artista, musa e arte para exaltar o fascínio das criações artísticas e debater noções acerca de dominação, hierarquização e trocas pela questão do olhar. Tais discussões são absorvidas pelo arco de Raphael ao perceber que sua paixão é platônica e não pode se concretizar da forma como gostaria. Por isso, a única forma de encontrar uma satisfação é se entregar enquanto obra de arte para Garance. O clímax se efetiva em uma cena interessante em termos visuais em função da reviravolta inesperada de sua premissa e dos simbolismos carregados por aquele encontro. Mesmo que ainda tenha um epílogo que tente resumir a ideia central trabalhada ao longo da narrativa, o que enfraquece os momentos anteriores que já bastavam como conclusão, a sensação de prazer momentâneo e trágico é o cerne bem explorado do olhar de Anaïs Tellenne.

Filme assistido durante a cobertura da 15ª edição do My French Film Festival (2025), disponível em plataformas online como a Filmicca.