“O GRANDE CIRCO MÍSTICO” – A definição da autossabotagem [20 F. Rio]
Cercar-se de ótimos nomes na equipe, ter como fonte um material original promissor e apostar numa abordagem fabulesca pareciam aspectos suficientes para render um bom filme. Apesar do elenco e dos responsáveis pela direção e pela trilha sonora, a execução sofre com problemas profundos que multiplicam os defeitos e sabotam as poucas virtudes do começo da produção. O GRANDE CIRCO MÍSTICO consegue prejudicar todas as potencialidades que havia entregado nos minutos iniciais da projeção.
Adaptado do poema homônimo escrito por Jorge de Lima, o filme conta a história de cinco gerações de uma família circense de 1910 até os dias atuais. A inauguração, o auge, a decadência e a fantasia do Grande Circo Místico são acompanhados pelo mestre de cerimônias Celavi, um homem que não envelhece com o passar dos anos. Ainda que haja uma proposta de narrativa que tente costurar as diferentes passagens do tempo, o caráter episódico é predominante. A ligação das gerações acontece através de pretextos frágeis, incapaz de criar uma trama sólida com início, meio e fim. Por si só, cada história é genérica, desinteressante e se desenvolve de forma esquemática com conflitos e soluções dramáticas simplistas.
A fragilidade das histórias também está relacionada ao não desenvolvimento dramático dos personagens. Há um desfile de figuras alegóricas que não aparentam ser pessoas reais com nuances e camadas, mas apenas símbolos da fábula contada – o pouco tempo em tela e a montagem acelerada, para dar conta de toda a cronologia, impedem qualquer identificação do público com os personagens, bem como o interesse por eles. Por mais que o elenco seja de peso (Bruna Linzmeyer, Mariana Ximenes, Vincent Cassel, Antônio Fagundes e Juliano Cazarré), a única atuação de destaque é a de Jesuíta Barbosa, vivendo Celavi como um personagem de conto de fadas por nunca envelhecer e por ter um tom de voz melódico de quem sempre está declamando algo.
Se, ao menos, o circo fosse tratado como um personagem central, seria possível justificar o pouco desenvolvimento dos artistas. Porém, não é o caso. Ele é mal aproveitado porque seu tom fantasioso e lírico é abandonado com o passar das gerações e se torna um local de tragédias pessoais (estupro, assassinato, venda de pessoas…), nada compatível com a imagem que o filme procura associar ao espetáculo circense. Nesse sentido, a direção de Cacá Diegues é responsável por tais falhas, ao não demonstrar a importância do circo para os personagens e ao construir sequências burocráticas indignas da fantasia e da magia prometidas (o primeiro espetáculo apresentado por Celavi e o número musical de Beatriz, interpretada por Bruna Linzmeyer e com canção de Milton Nascimento, são os poucos exemplos bem-sucedidos de uma câmera fluida e evocativa da beleza desses momentos).
Mesmo os aspectos técnicos da produção parecem se contaminar com a abordagem progressivamente frágil de seus realizadores. Nas primeiras apresentações circenses, a utilização de cores muito fortes, como o amarelo e o vermelho, se complementa ao figurino dos artistas e às características dos cenários, imprimindo um tom lúdico; o mesmo é evidenciado pela fotografia, intimista para performances individuais (através de feixes de luz frios e de menor intensidade) e grandiosa para momentos coletivos espetacularizados (através de feixes de luz intensos). No entanto, à medida que a narrativa transcorre, a atenção aos componentes estéticos é deixada de lado, sendo o design de produção e a fotografia do circo sugados pela decadência do local – e não se trata de trabalhar sua crise a partir do visual, pois a imagem adquire uma natureza estéril e vazia de significados.
O ponto que consegue manter uma regularidade ao longo de toda a projeção é o figurino. Especialmente graças ao personagem Celavi, o vestuário e os adereços correspondem às particularidades da moda de cada época retratada. Na década de 1910, há uma caracterização aristocrática com ternos e vestidos de alta costura; nos anos 1930, uma sobriedade a esse tom aristocrático ganha corpo; na década de 1960, uma abordagem quase hippie nas roupas coloridas e de um tamanho maior; nos anos 1980, uma extravagância na combinação das peças, inclusive com o próprio Celavi parecendo uma simulação de Michael Jackson; e, no século XXI, uma liberdade e um progressismo também evidenciado no cabelo e na maquiagem.
“O grande circo místico” traz a essência do circo apenas na proposta original de seguir gerações de personagens diferentes dentro do picadeiro. Durante toda a sua projeção, contudo, indivíduos circulam por ali sem que haja qualquer tipo de empatia ou demonstração da magia do circo. A estética característica, as histórias de vida e os artistas que passam por lá não deixam sua marca. É, por vezes, belo, porém de uma beleza fugaz e inexpressiva.
*Filme assistido durante a cobertura da 20ª edição do Festival do Rio (20th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.