“O GAROTO MAIS BONITO DO MUNDO” – O lado feio da beleza [45 MICSP]
Foi a beleza de Björn que lhe garantiu um papel que o alçou a uma fama estratosférica. Visto e anunciado como O GAROTO MAIS BONITO DO MUNDO na adolescência, ele se deparou precocemente com uma faceta nada bela dos bastidores da arte.
Aos quinze anos de idade, atuar em “Morte em Veneza” no papel de Tadzio mudou para sempre a vida de Björn Andrésen. Cinquenta anos depois, o artista ainda se depara com traumas resultantes da sua participação no longa do aclamado diretor Lucino Visconti, que o chamou, na estreia da obra, de “o garoto mais bonito do mundo”.
A história de Björn é uma história de perda. Em 1971, com o filme, ele perdeu a própria adolescência; hoje, já com sessenta anos, ele surge tendo abandonado a si próprio. De barba e cabelo compridos, magérrimo e de visual envelhecido, Björn Andrésen deixa seu apartamento sujo e assume risco de causar um incêndio, indícios da sua indiferença quanto à própria existência. Tudo isso é incompatível, porém, ao adolescente famoso no mundo todo como Tadzio.
Nos minutos iniciais, os diretores Kristina Lindström e Kristian Petri colocam um áudio antigo em que uma criança quer saber de seus pais. É assim que começa, de fato, a trajetória de Björn, órfão com apenas dez anos e à mercê de uma avó retratada à distância no documentário, mas que certamente não foi a mais responsável na função de guardiã do neto. Sabe-se que ela queria um neto famoso e que adorou receber um papel no longa de Visconti, não muito mais do que isso. Existem várias lacunas no longa: o que exatamente aconteceu com o garoto na boate? Onde estava a sua avó? Qual a influência de Visconti nos contratos relativos à imagem de Björn nos três anos seguintes ao filme (teria ele se limitado a receber os lucros?)? Existem também opções interrompidas sem motivo aparente: não faz sentido que Björn tenha ido ao Japão apenas para reconhecer o elevador do hotel e meramente entrevistar pessoas do seu passado (as conversas são frias, decepcionantes); fica sugerida a adoção, por parte do artista, de uma visão cristã da vida (quando ele menciona a fé e lê um livro sobre Jesus), porém isso não fica claro.
O que está claro no documentário, contudo, é a objetificação pela qual sofreu Björn desde que foi enxergado por Visconti. A cena em que eles se encontram apresenta requintes de crueldade, o garoto é tratado como um pedaço de carne à livre disposição do cineasta. O adolescente é devorado pelo diretor com os olhos, tornando hipócrita a sua fala de que o filme não teria nada erótico ou sexual na relação entre Tadzio e Gustav. Talvez fosse essa a intenção original, mas é evidente a forma luxuriosa pela qual Björn é visto por Visconti. Pouco importa se o menino entende o que é falado (como na entrevista em Cannes), o que importa é a sua beleza imaculada; irrelevante que precisasse tomar comprimidos para se sentir bem desde que esses comprimidos não o afetassem esteticamente.
A atmosfera de “O garoto mais bonito do mundo” é sombria, ora pela trilha musical, ora pela sua ausência (a cena dos documentos da mãe), ora pela fotografia escurecida, ora pela introspecção do próprio Björn. Com mais de sessenta anos e fumante inveterado, a voz rouca de Björn, aliada a uma tristeza que lhe é imanente, dificulta a compreensão do que ele fala. Seus relacionamentos interpessoais (com a namorada e com a filha) são difíceis porque a herança de dor que carrega nas costas o conduz às trevas da solidão, não à luz do afeto ou da alegria. Nos minutos finais, o adolescente e o adulto são contrapostos como se olhassem, cada um em um cenário compatível com seu estado de espírito: ambos em uma praia, porém aquele durante o dia e iluminado por um sol escaldante, enquanto este em um fim de tarde cinzento. Desde “Morte em Veneza”, Björn passou a se enxergar envolvido por uma “membrana de surrealidade” que o separava do resto do mundo. O artista presenciou ainda cedo o lado feio que existe em uma bela obra de arte (ou, mais precisamente, em seus bastidores). Seus dramas posteriores foram apenas consequência.
* Filme assistido durante a cobertura da 45ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.