O FAROL – O sedutor canto da sereia [43 MICSP]
É um confronto. O velho contra o jovem. O novato enfrenta o experiente. O ajudante contesta o chefe. É a influência do álcool. A solidão, o desejo, a curiosidade. Com o estímulo certo, ceder aos instintos mais primordiais do ser humano. Rir de alegria, chorar de raiva. Gritar, gritar muito, até não ter mais voz. É paixão ou libido? Quase beijar. Dançar! Um é versão do outro? São iguais e diferentes, iguais na desigualdade e desiguais na igualdade. O que está realmente acontecendo? Tudo isso é uma pequena fração do que está presente em O FAROL.
No longa, o jovem Ephraim Winslow é contratado pelo experiente faroleiro Thomas Wake para ser seu novo ajudante. As tarefas designadas a ele são serviços pesados, sendo-lhe expressamente vedado ir até a lanterna do farol. Quanto mais os dois convivem, maior o atrito e maior a curiosidade de Ephraim, que é ampliada com acontecimentos estranhos no local.
O longa tem um design de produção (assinado por Craig Lathrop) compatível com o período (fim do século XIX) e o local (uma ilha isolada). Caneta de pena, vestuário antigo, rochedo nas praias, tudo coerente com o universo diegético. Para aumentar a sensação de que o filme é antigo, Robert Eggers adota a excelente opção de reduzir a razão de aspecto, que fica quase quadrada, além de filmar a obra em preto e branco. No visual, parece um filme de época filmado na época.
A fotografia de Jarin Blaschke é esplendorosa, com destaque para a iluminação, geralmente natural ou com velas. No segundo caso, o feixe de luz oculta parte do cenário, deixando claro o período do dia em que a cena se passa. Quando há neblina, a imagem parece embaçada com a distância, ficando mais visível com a aproximação, como ocorreria na vida real. É essa também a trajetória do filme: o começo é nebuloso, mas tudo vai ficando melhor delineado com o transcorrer da narrativa.
A filmagem de Eggers é irrepreensível. Há suspense em simples travellings de baixo ao topo do farol. Quando Tom amaldiçoa Ephraim, um contreplongée que o torna ainda mais ameaçador. Tudo funciona bem inclusive graças ao magnífico design de som. Os ruídos diegéticos revelam um trabalho de foley sem igual (o alarme do começo parece um berrante, mas é tão estranho que soa extradiegético), enquanto a trilha musical de Mark Korven evoca a sensação de estranhamento da qual o longa depende – além de auxiliar na imersão do espectador, fundamental para que o filme funcione. Com referências que vão do cinema soviético ao expressionismo alemão, passando por clássicos literários (“O velho e o mar”, de Hemingway) e cinematográficos (“Os pássaros”, de Hitchcock, e “O iluminado”, de Kubrick), “O farol” é uma obra de arte sublime.
O roteiro dos irmãos Eggers – Robert, que dirige a película, e Max Eggers – coloca no centro da trama, de um lado, o embate entre Ephraim e Tom (o que, em termos narrativos, é a espinha dorsal do texto), e, de outro, a transformação pela qual o primeiro passa. No começo, enquanto Tom fuma cachimbo, Ephraim prefere cigarros; enquanto este bebe água, o segundo não larga o álcool. Com o tempo, eles se identificam a tal ponto que fica a dúvida se não seriam a mesma pessoa (como quando o acusado se defende imputando ao acusador a mesma conduta). Quem é o bêbado mentiroso?
Robert Pattinson tem interpretação irretocável no papel de Ephraim, um jovem que tinha um trabalho bem mais inflexível (literalmente) até virar faroleiro. Paulatinamente, ele adota justamente o que censura em Tom, nomeadamente a agressividade e o álcool. De homem pacato ele muda para a volúpia corporificada. Willem Dafoe, por sua vez, é sublime como um agressivo Tom. A despeito das cantorias e das danças, ele deixa claro a visão que tem de Ephraim: um rapaz tolo e indigno de respeito. Assim, ele ofende o ajudante, parecendo ter prazer em fazê-lo sofrer, física e verbalmente. É como se Ephraim não fosse uma pessoa: o chama de cachorro, faz ameaças, elimina gases intestinais com naturalidade. Não há espaço para contestação, apenas obediência.
Há uma instabilidade no comportamento de ambos: Tom é capaz de mudar da raiva ao riso em segundos; Ephraim vai sendo afetado pelo álcool consumido. Nos dois casos, isso apenas ratifica o trabalho primoroso de Pattinson e Dafoe: este nos excessos constantes, tornando o faroleiro imprevisível; aquele na crescente emocional (em condições normais, ele não teria feito aquilo com a gaivota). Se tornam tão semelhantes que é possível cogitar uma identidade. Até que ponto aquilo é real?
Ephraim está lá para ser mão de obra e aprender o ofício do faroleiro. Mas ele aprende também os vícios, encantando-se com o que aquele local surreal pode proporcionar. Tom é supersticioso, menciona condutas que dão azar. Ephraim é curioso, está disposto aos riscos mais severos para chegar perto da lanterna. Enquanto o primeiro só quer ser respeitado – por exemplo, ao insistir em ser chamado pelo nome -, o segundo revela até mesmo alguma vaidade – como ao se irritar pela reclamação quanto à comida. Os diálogos tratados entre os dois são longos não tanto do ponto de vista quantitativo, mas certamente no aspecto qualitativo: eles falam um inglês antigo (com sotaque), informal (“yes, sir’, no; ‘aye, sir”) e até mesmo com erros de conjugação (“get to work, says I”).
Qual o significado de tudo que é dito? As gaivotas querem impedir que Ephraim seja consumido pelo desejo? A água refletiria a poluição simbólica do local? Tudo soa como uma grande metáfora para o choque de gerações. Nessa linha de raciocínio, a similaridade entre eles reforça a ideia de que a humanidade está em um ciclo vicioso de querer o que não deve. O ímpeto jovem ignora a voz da experiência. Mas a voz da experiência é hostil em demasia ao ímpeto jovem. Talvez o canto da sereia seja sedutor demais para resistir.
Em tempo: “O farol” é um filme maravilhoso. O trabalho de Eggers aqui supera seu anterior (“A bruxa”). Mais uma vez, não é um terror tradicional. E isso é ótimo.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.