“O EXORCISTA – O DEVOTO” – Blasfêmia
Na bolha cinéfila, circula uma pergunta em tom de deboche: “Qual será a próxima franquia de terror a ser destruída por David Gordon Green?” O diretor fez uma trilogia que era ao mesmo tempo continuação e reboot do clássico “Halloween” de 1978, agradando no primeiro, dividindo opiniões no segundo e irritando a todos no terceiro. Anos depois, ele passa para outra referência do gênero ao imaginar uma nova continuação para “O exorcista“. Em 2023, O EXORCISTA – O DEVOTO se assemelha a “Halloween ends” na forma como esvazia a mitologia original e retira a identidade de qualquer elemento adicional.
A sequência do clássico de William Friedkin coloca duas jovens diante de um perigo mortal. Angela e Katherine desaparecem em uma floresta e retornam três dias depois sem memória do que aconteceu a elas, além de feridas em várias partes do corpo. O alívio inicial dos pais pelo reaparecimento das filhas logo se torna medo quando suspeitam que elas podem estar possuídas por alguma entidade demoníaca. Mesmo cético, Victor Fielding, pai de Angela, busca a única pessoa viva que já testemunhou algo semelhante: Chris MacNeil, mãe de Reagan, em “O exorcista” de 1973.
Revisitar filmes consagrados através de reboots ou livres continuações não é uma tarefa simples. Os riscos de comparações e de insatisfações dos fãs são grandes. Entretanto, David Gordon Green parece não se importar com isso quando arrisca em seguir caminhos bastante divisivos, o que cria mais prejuízos do que benefícios. O cineasta dá a sensação de não compreender os originais e, mesmo assim, querer reinventar o que foi estabelecido anteriormente. Na sua trilogia “Halloween”, a tentativa de discutir a influência de Michael Myers em sua cidade faz o assassino perder presença e importância. Já sua visita ao universo “Exorcista” referencia elementos conhecidos e introduz alterações na trama e na abordagem estilística, mas em nenhum dos casos há personalidade ou criatividade. Como então dar sua visão a um material já produzido antes se o trabalho é burocrático e as referências ao passado são constrangedoras? Em muitos aspectos, o terror é enfraquecido por conta da dificuldade de dar uma vida a uma obra sem alma.
O gênero tem algumas convenções próprias que provocam medo, tensão, angústia ou repulsa de maneira direta. O jump scare é uma das técnicas mais utilizadas pelo horror, sendo o susto criado pela aparição repentina de uma imagem assustadora, pelo surgimento inesperado de algo até então ausente no quadro e/ou pelo aumento abrupto da trilha sonora ou outros ruídos diegéticos. De alguns tempos para cá, o recurso passou a ser criticado como se fosse algo menor que retiraria qualidades do filme. No entanto, não há qualquer jump scare que seja ruim a priori, pois sempre depende do uso que se faz dele. E David Gordon Green exemplifica como a técnica pode ser empregada de modo a prejudicar o efeito pretendido em função dos excessos. Na transição de diversas cenas, há a inserção de algum som intenso para afetar o público, desde a buzina de um carro, o grito de um personagem até o latido de um cão. Além da utilização recorrente, a ferramenta se torna uma muleta para momentos que nem expressam o horror da trama.
Deixar o jump scare inexpressivo não é o único ponto que faz a narrativa carecer de identidade própria. Como se trata de uma história de possessão, algumas características fundamentais são necessárias, como o contraste entre a pessoa em seu estado natural e após estar possuída, os primeiros sinais de mudanças inexplicáveis racionalmente e a deterioração extrema dos comportamentos e das aparências das vítimas. Esses elementos estão presentes, mas dentro de uma encenação fria e de tom questionável. Por um breve período, a narrativa sugere que pode novamente trabalhar com a oposição entre fé e ciência a partir do ceticismo de Victor, mas o subtexto não vai além de rápidos flertes com o filme de 1973. Além disso, a direção de atores não encontra o timing para as atuações de Lydia Jewet e Olivia O’Neill, que custam a alcançar a tensão pedida se as sequências geram um humor involuntário ou se baseiam em jump scares pouco impactantes (por exemplo, o momento em que Angela não consegue dormir em sua casa).
A partir do momento em que as tentativas óbvias de ajudar as jovens falham, Victor recorre a um auxílio místico que remonta à mitologia da obra original. Procurar Chris MacNeil para que ela lide com o mesmo mal que se abateu sobre sua filha faz a narrativa dialogar com o clássico de 1973. E novamente David Gordon Green parece não entender a raiz do que realmente assustava no primeiro filme, o que o leva a trazer a personagem de volta sem dar a ela uma importância concreta. A presença de Ellen Burstyn oscila entre ser uma referência a despertar lembranças saudosas e ser desvalorizada como um mentor para uma batalha heróica iminente. Existe até um esforço de construir um arco para a personagem que envolva o desejo de reencontrar a filha há muito afastada, mas, na prática, a execução a enfraquece continuamente. Na sequência em que Chris corre um perigo mortal, a encenação é caótica porque se assemelha a uma paródia que drena o efeito chocante que os acontecimentos poderiam ter e ainda evoca o trauma de Victor com relação à morte de sua esposa como um flash incoerente para o momento em questão.
Outro aspecto inerente às histórias de possessão demoníaca é a necessidade de um exorcismo como única saída de salvação das vítimas, apesar do alto risco colocado nessa prática. Então, quando o terceiro ato chega a esse momento, a narrativa atinge o ápice dos problemas. A encenação do exorcismo é tão desorganizada que as ideias promissoras são desperdiçadas e as fragilidades são ampliadas. A dramaturgia no dilema mortal para salvar as duas jovens se enfraquece pela falta de conflitos na família de Katherine e pelo uso instável do trauma da família de Angela (lembrado quando convenientemente interessa para tentar aumentar o clímax). A construção de um cenário ecumênico em que religiões diversas se reúnem não é algo tão consciente para o diretor, que jamais explora esta diversidade como mecanismo de salvação. E a tensão do desfecho é substituído pela paródia, já que todos os incidentes estão em uma dimensão cômica fora dos planos: a troca de olhares embaraçosos entre os atores, a preparação como uma equipe de heróis em direção à batalha final, as reviravoltas medíocres como se fossem ótimas sacadas e o surgimento de luzes e efeitos como a manifestação de poderes sobrenaturais.
Particularmente, é a falta de um princípio geral para moldar a realização de “O exorcista – O devoto” que faz a produção depreciar cada um dos seus elementos constituintes. As convenções do gênero, os traços característicos desse tipo de história e a mitologia consolidada do universo até podem ser representados de forma distanciada e desinteressante. Mas, acima de tudo, David Gordon Green se mostra incerto sobre a força da discussão dramática que pretende desenvolver. Isso porque o embate entre fé e ciência cede lugar a um discurso motivacional duvidoso a respeito da fé que deve ser depositada nas pessoas para que alguns sejam salvos, outros sejam amados e mais alguns encontrem sua razão de existir. Como exemplo dos efeitos danosos dessa modificação, está o epílogo que conclui com um monólogo pretensamente edificante e um reencontro sem emoção alguma. Logo, como parte de uma franquia e como um filme isolado, está mais perto de uma blasfêmia do que de um ato de devoção.
Um resultado de todos os filmes que já viu.