“O ESPIÃO” – Jogo de aparências
O ESPIÃO tem como inspiração os fatos reais da infiltração do agente Eli Cohen do Mossad na Síria. Contada em seis episódios, a minissérie apresenta um fundo histórico, mostrando o papel da espionagem nas guerras do Oriente Médio, mas sem deixar de lado o aspecto dramatúrgico. A narrativa articula a trajetória de um personagem real à perspectiva temática e estética suscitada por um jogo de aparências em múltiplos níveis.
Entre 1961 e 1965, Eli Cohen foi selecionado pelo agente Dan Peleg e recebeu treinamento específico para embarcar em sua missão como espião na Síria. Assumindo a identidade forjada do empresário Kamal Amin Ta’abet, consegue contatos na Argentina capazes de dar veracidade à sua infiltração e, assim, permitir o repasse de informações para a agência de inteligência e para o governo israelense. Inicialmente, ele tem êxito em revelar segredos políticos e militares do inimigo, até o momento em que complicações trágicas ameaçam seu trabalho e sua vida.
A perspectiva central do jogo de aparências se evidencia, primeiramente, pelo desenvolvimento da trama. O roteiro traz uma complexa rede de relações na qual o protagonista precisa se inserir e compreender, colocando vários desafios. De ordem profissional, estão: o treinamento que envolve a preparação física, o manuseio de artefatos bélicos e tecnológicos e a preservação de sua segurança e identidade; o conhecimento dos personagens com quem deve conviver, sabendo o que pode ou não falar a cada um deles; e a obtenção de segredos de Estado, não deixando vestígios ou superando imprevistos e falhas. De ordem pessoal, estão: a ocultação do que faz, inclusive para a esposa, quando volta temporariamente para casa; e a diferenciação entre um modo de vida simples em Israel dos excessos da rotina luxuosa e repleta de relações importantes na Síria.
De modo articulado à trama, está a atuação pouco antes vista de Sacha Baron Cohen. O ator, ao invés de utilizar os trejeitos muito marcados de comédias como “Borat” e “Bruno“, apresenta uma performance sóbria e uma postura corporal firme e comedida. Tais componentes dramáticos acentuam a tensão submetida ao protagonista (exemplificada pela cena em que parece forçado a usar uma arma de fogo) e sua mudança de temperamento ao encarnar o disfarce como uma nova personalidade (exemplificada por sua revolta em uma loja de departamentos em Israel). Contudo, falta a Eli Cohen maior densidade psicológica e um arco narrativo específico que indique sua individualidade – no máximo, é possível saber que era um contador frustrado por ter falhado duas vezes em seleções feitas pelo Mossad e por não ser reconhecido por algo importante que teria feito no Egito (apesar de jamais informar a outras pessoas o que seria), e que corre riscos desnecessários para provar seu valor. Toda a jornada, na realidade, representa os altos e baixos de um espião e não de um indivíduo nessa posição.
O elenco coadjuvante também segue a linha das aparências. Nadia sofre com a distância e o tempo sem Eli, uma das consequências mais evidentes da vida dupla do marido para o âmbito familiar, enquanto ela mesma tem suas próprias ilusões de cuidar das duas filhas sozinha – o minimalismo da atuação Hadar Ratzon Rotem e a cena em que escreve uma carta em nome do esposo para agradar as filhas são indicativos da natureza sofrida da personagem. Dan é um agente dividido entre a esfera profissional, traduzida pela atenção meticulosa que dispensa ao treinamento dos espiões e pelo acompanhamento das missões e de seus resultados, e a esfera pessoal, evidenciada pelos cuidados oferecidos à esposa de Eli em razão de uma lembrança dolorosa de seu passado – Noah Emmerich alterna eficientemente entre cada uma dessas camadas, através dos monólogos ou das interações com outros agentes.
Além do desempenho de Sacha Baron Cohen, outro elemento chamativo da minissérie é a fotografia. Há uma dualidade no jogo de cores que marca a distinção entre os ambientes em Israel e na Síria e também evoca as dissimulações tão presentes na estrutura temática. As sequências passadas em solo israelense são banhadas por uma iluminação dessaturada, cinzenta e de teor melancólico, contrariando a crença de que, por ser o lugar menos arriscado da narrativa, traria cores fortes (acrescentado o fato de que a melancolia da separação de uma família influencia a fotografia); já as sequências em território sírio possuem uma iluminação vibrante e cores saturadas, aparentemente uma contradição com os perigos ali existentes (escolha justificada pelas ostentação de autoridades poderosas em festas e casas grandiosas).
Esteticamente, ainda há outros recursos relacionados ao tema principal da produção. Eles parecem indicar apenas um significado, mas, com a sua repetição, outros sentidos são construídos: a montagem paralela, usada primeiramente para encadear as etapas do treinamento e das primeiras ações de espionagem, em outros momentos, serve para criar um paradoxo entre imagem e texto; a técnica do split screen, inicialmente empregada para reforçar a distância entre Eli e Nadia, em seguida é colocada para aproximar dois personagens espacialmente afastados; e a indicação das mensagens enviadas por Eli para o Mossad através de grafismos na tela não apenas esclarece o espectador, mas também cria uma ironia dramática no último episódio.
Mesmo quebrando a linearidade do primeiro capítulo e mostrando parte do desfecho infeliz de Eli Cohen, o diretor e criador de “O Espião“, Gideon Raff, é hábil em conquistar o interesse do público e fazê-lo acompanhar a jornada do protagonista. Abordar o complexo recorte histórico das guerras entre judeus e muçulmanos não é o bastante para o realizador. Ele também está disposto a criar com eficiência a tensão para os momentos adequados e a imprimir sua própria visão temática e estética para uma realidade movida por aparências.
Um resultado de todos os filmes que já viu.