O DIABO ENTRE AS PERNAS – A toxicidade do ciúme [43 MICSP]
Fidelidade e desejo na terceira idade são os temas principais da coprodução entre México e Espanha O DIABO ENTRE AS PERNAS. O filme tem bastantes peculiaridades, mas cumpre o papel a que se propõe, de criticar o ciúme exagerado.
Na trama, Beatriz e o Velho são casados há muitos anos, já distantes da companhia dos filhos, mas no convívio de Dinorah, uma jovem que cuida dos afazeres da casa. Enquanto Beatriz sai de casa para ter aulas de tango – e se oferecer ao seu parceiro de dança, casado e mais jovem -, o Velho tem encontros com uma amante, um pouco mais jovem que ele, mas também casada. No meio dos dois, Dinorah apenas observa, até decidir agir.
O filme dirigido por Arturo Ripstein é em preto e branco e tem um total de cento e quarenta e cinco minutos. As cenas são lentas e muitas vezes alongadas, sem tornar o filme, contudo, tedioso. Um fator importante para manter o espectador, no mínimo, curioso quanto ao encaminhamento da trama, se refere às revelações sobre a personalidade dos três, além da participação de Dinorah.
O Velho, cujo nome não é mencionado expressamente – sendo o papel de Alejandro Suárez creditado nesses exatos termos -, é hipócrita, machista e ciumento. Hipócrita, porque ofende a esposa por traí-lo (mesmo sem ter dados concretos para afirmar isso) ao mesmo tempo em que a trai. Machista, porque vê mulheres como objeto. A única que ele trata bem é a sua amante, por motivos óbvios. Quanto às demais, todas são desprezadas (o que fica evidente quando ele fala mal das moças da propaganda de cosméticos).
O ciúme sentido pelo Velho em relação a Beatriz, à primeira vista, é uma incoerência descomunal. Como ele pode sentir ciúme de uma esposa que sequer o excita? Uma primeira interpretação, mais superficial, seria a de que ele quer ter propriedade sobre ela, ofendendo-a por ter prazer com outros homens. Mas existe uma segunda camada da sua personalidade (que não exclui a primeira interpretação): ele ainda nutre sentimentos por ela, apenas não enxergando uma forma de reatar o relacionamento. Sua forma de agir (ofendendo-a e falando obscenidades) é apenas um invólucro dentro do qual está aquele que um dia foi o marido por quem Beatriz se apaixonou.
Beatricita não era puritana e não escondeu isso do marido. Silvia Pasquel encarna a personagem muito bem, revelando uma fragilidade que o Velho não enxerga – por exemplo, na cena em que puxa o rosto para se imaginar sem rugas. A corda arrebenta do lado mais fraco: o Velho a maltrata, ela precisa maltratar alguém também, já que os dois desenvolvem uma linguagem limitada à agressividade. Sua vítima é Dinorah, vivida por Greta Cervantes, que também não é a bondade em pessoa.
É interessante atentar para o fato de que as três personagens principais são multifacetadas. Evidentemente, o Velho é repugnante com a sua postura, mas há algo por trás do crápula (caso contrário, ele não conseguiria tratar bem sequer a amante). Beatriz é ofendida pelo marido, estaria na posição de vítima, mas trata mal Dinorah, como quem extravasa a própria raiva com pessoas alheias ao motivo da raiva. A empregada pode não merecer os maus tratos, mas quer se meter na vida dos patrões. De certa forma, os três sofrem as consequências de seus próprios atos, o estado das coisas é justificado pela conduta pretérita deles. Assim, somente eles podem melhorar essa situação.
O roteiro de Paz Alicia Garciadiego tem alguns plot twists de interesse, mas erra no tom exageradamente novelesco. Beatriz e o Velho convivem entre tapas e beijos, o que se torna cansativo já na primeira hora de filme. É verdade que não há um momento em que eles estão plenamente felizes como casal, porém a repetição das efêmeras reconciliações beira o entediante. O desfecho permite múltiplas explicações e com certeza o clímax surpreende.
O design de produção da película é criativo para ornar os poucos cenários exibidos, destacando alguns objetos de cena (os manequins, por exemplo) na fotografia em preto e branco (opção que é coerente com a época em que a história se passa). A filmagem é muito boa, com planos longos e travellings bem feitos. Porém, não se pode negar o ritmo arrastado do longa, que pode assustar a plateia acostumada com filmes mais dinâmicos.
A proposta de “O Diabo entre as pernas” é fazer com que o público conheça bem o casal, se sinta envolvido e compreenda as razões por que atingiram aquele status da relação. Até mesmo a amante do Velho demora para aconselhá-lo adequadamente, percebendo a sua função como terceira no relacionamento. Não se trata de questionar a monogamia, mas indicar a toxicidade do ciúme. Com esse mote, a produção tem êxito.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.