“O CORAÇÃO DO MUNDO” – Ambiguidade do bom selvagem [1 FCR]
O mito do bom selvagem parece cair como uma luva em O CORAÇÃO DO MUNDO. A tese originária da obra do filósofo Jean-Jacques Rousseau defende que o ser humano seria puro e inocente em seu estado natural, sendo corrompido pela vida em sociedade. Essa ideia atravessa a caracterização do protagonista Egor através de uma relação ambígua entre sentimentos/interações sociais e natureza, que também se reflete na abordagem visual do filme.
Egor é um veterinário competente e de bom coração que prefere animais ao contato humano. Ele trabalha em uma escola de treinamento de cães de caça e mora em uma extensão adjacente à casa do chefe, curando bichos, limpando gaiolas, atendendo clientes e seus cachorros, entre outras funções. O sujeito tenta de tudo para ser aceito no círculo de pessoas próximo ao empregador, tendo como objetivo fazer parte de uma família.
O personagem central se assemelha a um Mogli versão adulto ou um Tarzã da área rural da Rússia, vivendo mais à vontade entre cachorros, cabras, raposas e cervos do que com Nikolai e seus familiares. A grande dificuldade de Egor é lidar com seus sentimentos e se conectar emocionalmente com alguém, desde que foi rejeitado pela própria mãe alcoólatra – é muito sintomática, por exemplo, sua reação ao ser informado sobre a morte da mãe ser adiada até o momento em que está sozinho à noite e ninguém pode vê-lo se emocionar. Algo semelhante ocorre nas várias ocasiões em que interage com a família para quem trabalha, muito mais através de diálogos comedidos sobre os serviços da propriedade – ficam evidentes as razões que fazem o homem ficar mais tempo em seu quarto à noite do que na companhia de outras pessoas, precisando ser convencido a se juntar aos demais.
Contudo, quando ele está cercado pelos bichos, sua transformação é nítida. O protagonista parece ser mais um entre tantas espécies, podendo expressar carinho pelo simples toque, pela preocupação com a saúde deles ou por conversas pueris. Tamanha simplicidade no convívio se traduz no tempo destinado à alimentação dos cães e demais trabalhos rotineiros (filmados por longos períodos), na cena em que é acordado por um grupo de cabras na cama e em todo seu esforço de curar uma cadela gravemente ferida – os dois, inclusive, constroem uma relação próxima que a faz dormir no mesmo quarto do veterinário, ser constantemente carregada por ele e ajudada a voltar a andar. Portanto, não é coincidência assistir a tantas sequências em que o protagonista está em contato direto com o ambiente natural, afinal é o seu hábitat por excelência também.
Seria simplificador demais desenvolver Egor como uma figura de opostos excludentes (a dificuldade de se relacionar com seus pares e a intimidade com os animais). Por isso, a narrativa destaca suas contradições: apesar de não se sentir totalmente confortável com outros indivíduos, divide momentos de ternura tímida com Ivan e Dasha; embora cuide dos bichos com dedicação, fecha os olhos para os maus tratos sofridos pelas raposas para ser bem visto pelo patrão. Tais paradoxos se intensificam com a entrada de um grupo de ativistas pelos direitos dos animais, que realça as ambiguidades nas atitudes “selvagens”, no sentido de não se conformarem às normas sociais – os conflitos reprimidos do personagem ganham maior relevo com a atuação de Stepan Devonin, inicialmente minimalista, em seguida, marcada por explosões emocionais.
Além de Egor, as demais figuras também são contraditórias no que se refere à postura assumida publicamente e à natureza mais íntima da personalidade. Por exemplo, Dasha parece um porto seguro de estabilidade para o protagonista até insistir diversas vezes em manter relações sexuais com ele para preencher um vazio emocional; já Nikolai cria para si uma imagem inabalável e rude que não vê sentido de expressar emoções ou tentar salvar um animal gravemente ferido, mas revela fraquezas com o álcool. Ambos impactam na condição do veterinário, pois ele jamais se sente à vontade durante o sexo com Dasha e sempre tenta fazer algo para ser aceito por Nikolai. À medida que a narrativa transcorre, existem mais cenas para colocar os personagens à prova.
Nataliya Meshchaninova define uma abordagem estética igualmente baseada na ideia de contradição. Em geral, a decupagem é seca e sem grandes rompantes emocionais ou variações na composição dos planos; porém, o estilo se transforma em uma decupagem mais caótica com uma trêmula câmera na mão em passagens específicas encenadas em planos-sequência. Essa alternância aumenta seu efeito quando a primeira estratégia é utilizada prioritariamente nos momentos partilhados com os animais em que seus sentimentos são genuínos, assim como quando a segunda técnica é empregada nas cenas em que libera emoções impulsivas nas situações vividas com os humanos. Em certa medida, a abordagem seca, mesmo podendo ser assimilada em algumas leituras, pode ser desgastante em termos sensoriais pela recorrência dentro de um único tom.
Mesmo prolongando por tempo considerável a decupagem mais sóbria, “O coração do mundo” envolve o espectador sem que este perceba imediatamente. Do segundo para o terceiro ato, a narrativa atinge o ápice das ambiguidades ao fortalecer as relações com os humanos e os animais através de imagens emblemáticas. Guardadas as devidas particularidades, este filme pode remeter a “O enigma de Kasper House” no que se refere ao estudo sociológico da vida em sociedade e da essência selvagem em estado bruto que carregamos. E, como se trata da humanidade, não é possível esquecer as contradições que permeiam mitos, idealizações e maniqueísmos.
* Filme assistido durante a cobertura do 1º Festival de cinema russo.
Um resultado de todos os filmes que já viu.