“O CONDE DE MONTE CRISTO” (2024) – Entre a justiça, o justiçamento e a vingança
O CONDE DE MONTE CRISTO, de 2024 (não confundir com as outras adaptações para o cinema), é uma das poucas adaptações da literatura para o cinema que consegue incorporar a alma da obra principal. Com uma trama envolvente e que questiona a diferença entre justiça, justiçamento e vingança, o longa é fiel à sua origem mesmo ao fazer modificações. Trata-se de um trabalho tão bem feito que reforça a genialidade do original.
Apesar de sua origem humilde, Edmond Dantès está com a vida prestes a mudar em razão de sua nomeação como capitão, o que lhe permitirá se casar com sua amada Mercédès. O casamento, porém, é interrompido quando ele é preso por um crime que não cometeu. Anos depois de preso, ele consegue fugir, assumindo a identidade do Conde de Monte Cristo e planejando uma vingança contra aqueles que o traíram.
Os codiretores e corroteiristas Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte têm familiaridade com a obra do genial Alexandre Dumas. Responsáveis pelos roteiros de “Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan” e “Os Três Mosqueteiros: Milady”, dessa vez eles fazem adaptações mais substanciais no texto original de Dumas, eliminando ou modificando personagens e alterando motivações. Há alguma dificuldade em comprimir a longa trama, de modo que o filme parece apressado em alguns momentos (na incriminação de Dantès e no envolvimento de Caderousse, por exemplo). Entretanto, é notório o êxito em amarrar as subtramas, que não são poucas.
Essa é uma das razões pelas quais a produção pode soar novelesca. De fato, sua narrativa é complexa, existem subtramas também complexas orbitando a trama principal, os conflitos são internos e de ordem ética e emocional, há reviravoltas no roteiro e o tom atribuído ao longa é muitas vezes melodramático (com falas como “sem você, a minha vida está perdida, ou o uso de slow motion em um instante decisivo). Porém, esse rótulo, além de menosprezar um gênero, ignora a fidelidade ao folhetim publicado por Dumas no fim da primeira metade do século XIX.
Nesse sentido, o longa é adequadamente norteado pelo Zeitgeist, por exemplo, na noção de honra e mesmo nas minúcias questionáveis. No primeiro caso, o ato de Dantès nos minutos iniciais justifica o reconhecimento do patrão; da mesma forma, seu pai se preocupa mais com o agradecimento a um terceiro do que com a comemoração do filho. No segundo, exige-se uma suspensão da descrença coerente com uma narrativa do século XIX, como na história do tesouro, na fuga da prisão e nos disfarces de Dantès.
Tecnicamente, “O Conde de Monte Cristo” é primoroso. Sem prejuízo das outras (boas) músicas da trilha, sua Leitmotiv é uma mescla entre regozijo e superação, transmitindo alegria e instigação. Visualmente, o primeiro ato exibe o belíssimo litoral da Córsega como símbolo da felicidade de Dantès. Como seu oposto, o segundo ato expõe as condições precárias do cárcere a que o protagonista é submetido: sua condição física, no corpo magro (e não musculoso como no prólogo), na barba e nos cabelos longos; seu figurino, nos trapos sujos e furados bem distintos da parte inicial; o local, uma ilha isolada, com luz vertical e sombra apenas nas margens da cela, que mais parece um poço. No terceiro ato, o anti-herói está fora da prisão e inicia o seu plano, quando aparecem novamente paisagens bonitas e a exuberância da riqueza proporcionada pelo Abade Faria (Pierfrancesco Favino). Porém, a beleza bucólica do primeiro ato (na Córsega), reflexo de felicidade, é substituída por uma beleza fruto desse luxo (em Marselha), e é tão artificial quanto ele. Por exemplo, a casa do Conde, com seu ar oriental, não combina em nada com a atmosfera francesa em que as personagens vivem.
No ato final, há um crescendo de tensão narrativa, mas é o terceiro o ato mais atraente, pois é nele que o grande plano arquitetado por Dantès começa a tomar forma. É nele que surgem André (Julien De Saint Jean) e Haydée (Anamaria Vartolomei), aliados cuja confiabilidade (sobretudo em relação ao plano) é questionável. A montagem paralela demonstra que os atos do trio constituem um teatro para enredar Fernand (Bastien Bouillon), Villefort (Laurent Lafitte), Danglars (Patrick Mille), Albert (Vassili Schneider) e Victoria (Julie De Bona). Ao colocá-los, todavia, em uma vala comum, Dantès revela que seu desejo está distante da justiça, configurando justiçamento. Torna-se interessante, então, a maneira como o roteiro o coloca como uma figura intermediária entre o vingativo André e a hesitante Haydée, como se houvesse uma corda amarrada aos três que pode ser conduzida a uma ou a outra direção, a depender de seus atos. O fiel da balança acaba sendo o próprio protagonista, o que reforça a atuação soberba de Pierre Niney no papel principal. Embora todo o elenco esteja bem, Niney exala brilhantemente uma raiva guardada por anos e saciada aos poucos, mas com o constante autoconvencimento de que o que faz é o certo. Com ele, Dantès não se torna um “braço armado de um destino cego e surdo” – apesar de afirmar que sim -, mas uma figura traumatizada que aprendeu a sordidez sem desaprender a nobreza moral, o que significa que, se consumar a vingança, sua consciência será plena.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.