“O COLIBRI” – As finitudes que atravessam o tempo
O cinema italiano contemporâneo é marcado por um estilo que integra drama, humor, fantasia e realismo enquanto faz um retrato do cotidiano e por alguns nomes emblemáticos como Paolo Sorrentino, Roberto Benigni e Nanni Moretti. Indubitavelmente, os realizadores atuais são tributários de grandes nomes da história do cinema no país, como Federico Fellini. De certa forma, O COLIBRI reúne traços que remetem à cinematografia contemporânea e aos clássicos da Itália ao narrar a trajetória de sucessos e tragédias de um homem ao longo de muitos anos. A questão principal que se sobressai é se a dimensão do tempo, tema tão caro à narrativa, é explorada na mesma proporção expressiva a cada nova escolha criativa.
Baseado no romance homônimo escrito por Sandro Veronesi, Marco Carrera é um médico que tem sua vida acompanhada desde a década de 1970 até os dias atuais. Ao longo do caminho, as relações que marcaram sua infância, juventude e vida adulta são mostradas. Na casa à beira mar de sua família, ele conheceu e se apaixonou pela vizinha Luisa Lattes, mas este amor nunca se consumou. Anos depois, o médico formou uma família se casando com Marina e tendo uma filha chamada Adele. O casamento e a maturidade enfrentam golpes imprevisíveis do destino que fazem o homem vivenciar terríveis provações relacionadas à morte, às separações e aos fins de uma existência.
A estrutura narrativa pode lembrar “A doce vida” de Federico Fellini por ter uma dimensão existencial que aborda o sentido da vida e o peso do tempo sobre as relações sociais. Se o filme de 1960 critica o vazio existencial no mundo das celebridades e em um modo de vida extravagante que não preenche os indivíduos, a obra de Francesca Archibugi trata das reviravoltas recorrentes que podem acontecer por conta de eventos negativos em sucessão ao longo do tempo. Nesse sentido, a diretora constrói um retrato realista de seu protagonista e das pessoas ao seu redor apesar de não manter uma linearidade tradicional. À medida que passeia por passado, presente e futuro, a trama se sustenta nas dificuldades ou nas tragédias que se passam na vida de Marco: os conflitos dos pais, uma situação de quase morte na adolescência, a perda inesperada da irmã mais velha, a paixão jamais concretizada com Luisa, as divergências com Marina, as questões psicológicas da Adele, o alerta misterioso do psiquiatra da esposa, o afastamento emocional em relação à filha, as doenças de seus familiares e mortes precoces de entes queridos.
Francesca Archibugi também evoca o trabalho de Federico Fellini através de uma sensação onírica ou de alguns flertes com um realismo fantástico. Nas duas obras, o efeito se dá pela maneira como os cineastas articulam a passagem do tempo em suas narrativas, precisando trabalhar uma duração extensa de fatos dentro da duração fílmica. No caso de “O colibri“, a momtagem cumpre um papel essencial nas transições de diferentes fases da vida de Marco quando cria paralelismos para momentos diversos ou apresenta pontos de vista variados para uma mesma situação. Assim, há vários instantes em que o médico direciona o olhar ou entra em um cômodo e a sequência da ação se situa no passado ou no futuro próximo. Em outras cenas, o telefonema que traz uma notícia ruim é filmado por ângulos distintos e é inserido em momentos diferentes para ressaltar o peso dos acontecimentos sobre o destino dos personagens. Além disso, o trabalho de maquiagem rejuvenesce ou envelhece o elenco com eficiência sem precisar ser tão chamativo, pois o propósito é a auxiliar o movimento do público pelas linhas temporais.
Como consequência, o tempo é flexibilizado para aparecer como algo fluido que não se resumiria a uma categoria fechada, linear e de ritmo constante. É possível que ele retroceda, avance, reviva situações antigas, promova transformações, passe com maior ou menor velocidade e propicie alegrias ou sofrimentos. Em todo o caso, o eixo em comum que testa o protagonista é a recorrência de términos desagradáveis e incontroláveis que marcam sua trajetória. Como seguir vivendo com traumas, culpas, dores, desilusões, arrependimentos e perdas decorrentes de mortes na família, traições nos relacionamentos, acidentes trágicos e problemas emocionais? Quando a narrativa trabalha essas questões através de acasos ou de eventos sem maiores explicações (a aparição abrupta de um terapeuta e o aspecto “sobrenatural” de um amigo de Marco), a influência inescapável do tempo se faz presente. Porém, as lacunas temporais e as passagens aceleradas de uma subtrama a outra fragilizam arcos e conflitos que também formam o protagonista, como as relações com o irmão e a filha.
Então, a irregularidade dá o tom dos elementos da vida do médico que compõem o universo diegético. Enquanto a relação conturbada com Marina e o vaivém com Luisa recebem um bom tempo de tela e uma abordagem meticulosa, os desentendimentos com o irmão Giacomo e a ausência paterna para a filha Adele se limitam a momentos pontuais sem grande desenvolvimento. Logo, a construção dramática do elenco gira muito em torno de um protagonista que possui poucas variações emocionais por conta de sua própria definição como indivíduo. Ainda assim, Pierfrancesco Favino estabelece Marco como um sujeito pacato, empático e capaz de se deixar de lado para favorecer as necessidades de outras pessoas. Por vezes, algumas cenas conflituosas parecem exigir que o personagem transborde emoções mais intensas, mas a própria narrativa mantém um tom morno para os embates. As subtramas que se tornam excessivamente elípticas também fazem que as performances de Bérénice Bejo, Kasia Smutniak e Alessandro Tedeschi sejam intermitentes e não possibilitem efeitos sensoriais significativos.
De modo geral, “O colibri” faz seu personagem central transitar por diversos eventos, temporalidades e estágios e o espectador acompanhar o desenrolar de uma vida desde os anos 1970. Nem sempre a trajetória encenada envolve, já que parte dessa existência desperta maior interesse do que outros segmentos ou parece mais orgânica dentro do universo dramático (o interesse de Marco pelo pôquer não tem a mesma força que suas relações amorosas, por exemplo). E considerando o viés melodramático que a narrativa absorve ao trazer para o centro da discussão o valor de seguir lutando para dar algum propósito à vida, a impressão final do filme resvala em uma contradição importante. A sequência de encerramento fala sobre a necessidade de aceitar a finitude de tudo, valorizando a chance de conseguir influenciar em como será esse fim, e faz uma ponte emocionalmente poderosa com um momento sensível anterior. No entanto, o que a produção consegue executar na maior parte do tempo é um exercício mais técnico e intelectual de construção de uma narrativa não linear que abaixa o tom da emoção. Assim, quando uma catarse emocional se aproxima, o alcance é efêmero.
Um resultado de todos os filmes que já viu.