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“O CLUBE DAS MULHERES DE NEGÓCIOS” – Com raiva, agora ela resolveu falar [48 MICSP]

Ao apresentar O CLUBE DAS MULHERES DE NEGÓCIOS, sua realizadora anunciou o filme como “bruto, brutal, fruto da estupefação; uma viagem delirante, uma catarse”. O longa é subversivo e irreverente, mas ácido demais para se enquadrar em uma sátira qualquer. Essa brutalidade é identificada em um componente que permeia a obra: a raiva.

Em um mundo onde os estereótipos de gênero estão invertidos, um jornalista iniciante e um experiente fotógrafo vão a um clube de campo frequentado por poderosas mulheres de negócios para entrevistá-las. Enquanto elas almoçam, três onças escapam de um “onçário”, iniciando-se uma dissimulação que coloca todos em risco.

(© Vitrine Filmes / Divulgação)

Retornando a um estilo menos sisudo em sua filmografia, a diretora e roteirista Anna Muylaert tem como premissa a construção de um universo sólido, no qual os papéis femininos e masculinos estão invertidos. Isso significa que o clube não é uma bolha, mas reflexo daquela sociedade imaginada pela cineasta, que, por sua vez, faz um espelhamento da sociedade real, trocando os clichês de gênero. Esse espelhamento sofre distorções para fins satíricos, é verdade, mas isso nem sempre ocorre, uma vez que há diversas referências a fatos e eventos (cômicos e trágicos) que, embora pareçam surreais, não poderiam ser mais verídicos, como a tinta do cabelo escorrendo e a influência de lideranças religiosas no poder. Ou seja, Muylaert elabora uma sátira, porém sua base não está apenas nas hipérboles e ridicularizações, ainda que o tom principal seja de ironia e sarcasmo. Variando os graus de radicalismo satírico, por vezes, o longa assume até mesmo viés dramático, em especial ao envolver Candinho.

É curioso perceber que Rafael Vitti serve adequadamente para a função arquetípica de Candinho – isto é, como aquele jovem atraente, extremamente ingênuo e de inteligência subestimada (papel comumente atribuído a mulheres, aqui subvertido) -, mas não tanto na parte dramática da personagem. Isso se deve à sua caracterização (usando baby look de barriga à mostra, com cores vibrantes, unhas pintadas e repleto de acessórios) e ao seu talento modesto como ator, como se ele tivesse sido escolhido pela juventude e pela beleza, tal qual ocorre com diversas atrizes, igualmente objetificadas em si mesmas e em seus papéis estereotipados. Com isso, percebe-se que a produção é uma sátira de duas camadas. Na primeira, há uma crítica mordaz à sociedade machista; é o que está na diegese. Exemplos disso estão no vídeo gravado por Candinho para a internet e no comentário de Yolanda ao marido Jaderson (Tales Ordakji) quando este pretende comer uma sobremesa. Na segunda camada, há uma crítica ainda mais sagaz ao machismo da própria linguagem cinematográfica empregada nos filmes, o que se verifica de maneira bem clara no modo como os atendentes são filmados: a câmera os segue, em enquadramentos na região da cintura, tendo todos eles o padrão de beleza ditado pela sociedade. Também o figurino exerce essa finalidade, colocando os homens com roupas que exibem seus corpos, exatamente como muitos filmes fazem com as mulheres. Outro exemplo está no charuto de Cesárea (Cristina Pereira): geralmente associados ao poder, em quantos filmes as mulheres (sobretudo quando comparadas aos homens) aparecem fumando charutos?

Há uma quantidade demasiado grande de personagens, de modo que nem todas recebem a mesma atenção. Para a bandeira que defende, teria sido mais interessante dar mais espaço para a personalidade das mulheres, como Brasília (Louise Cardoso), Norma (Irene Ravache) e Donatela (Ítala Nandi), que são subaproveitadas para que Zarife (Katiuscia Canoro) e Yolanda (Grace Gianoukas) brilhem. Zarife é o extremo da sátira: escrachada, com um jeito grosseiro, palavreado de baixo calão e alto volume de voz, a personagem combina com Canoro, mas se torna uma crítica cansativa e pouco inspirada do bolsonarismo, destoando do tom do filme como um todo. Diversamente, Yolanda é um acerto não apenas por escancarar de forma realista (e sem sair da sátira) um tema relevante, mas também pela interpretação debochada de Gianoukas, cujo exagero é acertado por não chegar ao nível de Canoro.

A narrativa é mais instigante nos recortes das conversas durante o coquetel, quase como esquetes, e em cenas pontuais, como a do assédio sexual. A parte do “onçário” exerce função simbólica, mas é muito desinteressante para a criação de uma trama. A sensação que fica é que Muylaert estava muito inspirada no estilo e na criação de um universo, mas não soube elaborar uma trama à altura da sua ideia. A liberdade dos animais serve como uma alegoria para a emancipação feminina e a pobreza nos efeitos digitais dialoga – provavelmente sem ter esse propósito – com a crítica ao cinema machista, como se essa emancipação fosse desvalorizada (exatamente como os próprios efeitos). Também a escolha pelas onças transmite a fúria e a indignação da cineasta face a esse contexto social e cinematográfico, o que é corroborado pelo desfecho, embalado pela canção “Não vou ficar”. Se “toda verdade deve ser falada”, agora ela resolveu falar.

* Filme assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).