“O CHARLATÃO” – Não tão engessado quanto a maioria do subgênero [44 MICSP]
Dramas biográficos costumam ser engessados em demasia, com um arco dramático de ascensão e queda bem claro, cronologia didaticamente exposta e nenhuma surpresa. Não que O CHARLATÃO seja o mais inventivo drama biográfico já visto, mas a cronologia que cria dois arcos dramáticos em diferentes momentos da vida do protagonista é fator suficiente para, ao menos, chamar a atenção.
O herbalista Jan Mikolasek sempre foi motivo de controvérsia, algumas vezes até chacota, o que não impedia as pessoas de recorrerem a ele quando tinham problemas de saúde. Seus métodos de tratamento eram heterodoxos, porém deram-lhe fama e fortuna. Quando morre o presidente de seu país, ele perde a sua proteção. Todos os anos de dedicação aos cuidados de pessoas doentes podem resultar em prisão por charlatanismo – ou sanções ainda mais severas, já que ele se torna inimigo da pátria.
O longa é um drama biográfico de época, com uma segunda camada, de romance. O ponto de partida do roteiro de Marek Epstein é a morte do presidente da Tchecoslováquia comunista, ressaltando que o totalitarismo do regime é em si mesmo um perigo para Jan. A partir disso, contudo, o texto se divide em duas linhas temporais, com saltos cronológicos relativamente longos, mas facilmente compreensíveis. Logo, o script obedece à máxima “show, don’t tell”, exibindo o backstory do protagonista ao mesmo tempo em que mostra as consequências desse backstory anos depois. Com essa opção, o texto se torna dinâmico e concede um certo papel ativo para o espectador, que organiza as peças que poderiam ser fornecidas na ordem cronológica e com datação.
Foi um acerto fugir do didatismo. Mesmo não se sabendo exatamente quando a ação ocorre, é fácil captar a data aproximada. Por exemplo, se ele já é um homem maduro e se Hitler já está morto, quando a narrativa volta para o passado e ele é um soldado, a conclusão lógica é que está lutando na Primeira Guerra. Quando, em um passado não tão distante (em relação ao presente diegético), a polícia o tira de casa para testar suas habilidades, o panorama é o da Segunda Guerra Mundial (quando ele menciona o nome Gestapo, tudo fica mais fácil, é claro). Portanto, o filme viaja temporalmente entre quatro períodos: Primeira Guerra, Entreguerras, Segunda Guerra e Pós-Guerra. Mais que isso, a narrativa aproveita bem o Zeitgeist de cada período, com ênfase no último, evidenciando o quão truculenta era a Segurança Nacional.
As duas linhas temporais (pretérito e presente diegético) também são relevantes para que o espectador compreenda a conduta e a personalidade de Jan. Na sua versão mais experiente, Ivan Trojan transparece frieza e indiferença no papel, diferenciando-o da versão adulta, que é mais alegre (o trabalho de maquiagem também auxilia na distinção). Para enaltecer ainda mais essa diferença, a fotografia tem papel fundamental: no presente diegético, ela é escurecida, com aparência de suja; no pretérito diegético, clara e de cores mais vivas. Tudo converge para a mesma ideia: o Jan que aparece no começo (versão experiente) se tornou retraído depois de aproveitar uma vida em que fez o que desejava. Sem muitos freios, na versão adulta, ele era movido pela própria vontade, o que, por outro lado, gerou nele um lado obscuro.
A riqueza do roteiro consiste especialmente nesses detalhes da personalidade de Jan, que são pescados com o desenvolvimento não linear da narrativa (o que não é inédito, mas consegue dar maior respiro à trama). Quando jovem (na versão bem interpretada por Josef Trojan), ele já sentia o dom para curar pessoas, encontrando uma mestra que começou a moldar seu ser – não apenas no que se refere aos métodos de tratamento dos doentes, mas como um todo (por exemplo, ao impor-lhe um cristianismo fervoroso). Depois, nas versões maduras, ele se realiza com um amor que o consome e que faz com que ele mesmo consuma quem ama. O desejo se torna paixão, a paixão se torna possessão, o que justifica algumas de suas atitudes das quais visivelmente se arrepende. O semblante fechado da última versão do protagonista é, pois, resultado desse arrependimento, ou da percepção de que agiu errado.
No pretérito, Jan passa do aprendizado ao pecado (que é como ele vê sua conduta, penalizando-se em frente a uma estátua de Jesus crucificado); no presente, ele precisa lutar contra um pré-julgamento, aparentando estar condenado antes mesmo de ocorrer o julgamento. Agnieszka Holland tem em mãos uma história instigante e comovente, cujo final encerra bem a proposta. A direção não é extraordinária e há subtramas inexplicavelmente abandonadas no filme – como a relativa à sogra de Palko (Juraj Loj) e à sobrinha de Jan. Contudo, “O charlatão” é um filme que foge um pouco (muito pouco, mas foge) do engessamento de dramas biográficos, o que já faz com que mereça ser visto.
* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.