O CARCEREIRO – Um suspense e um dilema [43 MICSP]
Imagine o seguinte dilema moral: um homem condenado por um crime está escondido em um presídio prestes a ser demolido. Existem indícios, porém, da sua inocência. Se ele for encontrado, precisará ser levado ao cumprimento da sentença, que pode ser injusta. Se não for encontrado e o presídio ficar aberto, talvez ele possa fugir e ficar impune. Se não for encontrado e o presídio ficar fechado, morrerá em razão da demolição. O que o diretor do presídio deve fazer? Resumidamente, é esse o enredo de O CARCEREIRO.
O filme se passa no Irã de 1966, tendo como protagonista o Major Jahed, que é quem enfrenta o dilema. Como é conhecido por dirigir o presídio com rigidez, o argumento da assistente social Karimi de que Ahmad não praticou o crime é inócuo. Assim, Jahed está disposto a mover montanhas levar Ahmad ao cumprimento da sentença. Antes disso, todavia, precisará encontrá-lo.
O roteiro de Nima Javidi é bastante engenhoso, quiçá um dos melhores atributos do longa. A primeira dúvida que instiga o espectador é: Jahed conseguirá encontrar Ahmad? Para o primeiro, o segundo ainda está dentro da prisão, pois não poderia ter fugido – porém, não há certeza disso. Por sua vez, uma segunda dúvida: ainda que Ahmad seja encontrado, será ele submetido ao cumprimento da sentença teoricamente injusta? Ainda uma terceira dúvida: ele foi mesmo condenado injustamente? Com base nesses questionamentos (todos envoltos no mencionado dilema moral), o filme se torna um suspense magnético, criando mais e mais curiosidades conforme a trama evolui.
Enriquecendo a narrativa, Javidi concede a ela pistas – nem todas elas plenamente verdadeiras – para que o espectador monte o quebra-cabeças. Impressiona a maneira com que a cineasta – responsável por roteirizar e dirigir a produção – arquiteta um paradoxo engenhoso, envolvendo detalhes de muita sagacidade. Em princípio, um preso carregando um sapo seria mera esquisitice, enquanto a chuva seria apenas uma alusão às dificuldades enfrentadas pelo protagonista. Não é o caso de “O carcereiro”: as minúcias têm função narrativa. É verdade que o texto tem alguns problemas, como a margem de previsibilidade (o final pode decepcionar) e uma cena bem descartável (a que Jahed fica trancado na cela), mas certamente é um script sólido e convincente.
Para dar essa solidez, a competência do elenco é essencial. Navid Mohammadzadeh faz de Jahed uma figura unidimensional apenas na aparência. À primeira vista, o diretor do presídio é desumano, afirmando que presos condenados à morte não são pessoas (chamando os presidiários de animais). Ao ver a sua motivação para a intransigência, talvez ele não seja rígido por maldade, mas por ambição – algo muito mais crível. Quando surge a Karimi de Parinaz Izadyar, fica evidente que o filme deixaria surpresas para além do flerte entre os dois. Dito de outro modo, Jahed não é um homem planejando tornar um inferno à vida dos presos à toa; Karimi não é a mulher objetificada. Para os dois papéis, muitas camadas e uma ótima química entre os atores. No caso dele, um tique humorístico bem divertido (na vaidade que tenta esconder ao arrumar as sobrancelhas, por exemplo); no caso dela, alguns segredos. Nos diálogos, ainda, eles travam conversas preciosas, como a fala dela segundo a qual “pode-se ir até o inferno com bondade” após ele afirmar que “não se pode dirigir uma prisão com bondade”.
A trilha musical é pontualmente boa, destacando-se em momentos-chave (como a música romântica que Jahed coloca no microfone). Fica bastante claro o requinte do trabalho já nos primeiros minutos, com o prólogo sensacional (em sequência de montagem paralela, o esvaziamento do presídio). No design de produção, chamam a atenção as paredes rachadas e sujas do local, porém com cores distintas – na parte administrativa, com tons de amarelo; na parte das celas, cinza (o que sugere a inferiorização dos encarcerados). Os amplos corredores vazios enfatizam o grande espaço em que Ahmad poderia se esconder, enquanto a cor do carro de Karimi, vermelho, dialoga bem com a ambiguidade da personagem (dividida entre o cumprimento das regras e o senso de justiça). O filme praticamente inteiro parte do ponto de vista de Jahed, mudando apenas quando há um propósito específico de conduzir o público a determinada direção.
“O carcereiro” não é uma produção grandiosa, dispensando um elenco de longo currículo, locações variadas e efeitos variados. Precisou apenas de uma ideia eficaz e funcional, unindo suspense, drama e até mesmo ação. Ou melhor, um suspense que carrega um dilema.
* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.