“O AUTOR” – O preço da arte
A criação artística tem seus prazeres e demônios. Independentemente de qual seja, ela requer do seu criador a força mental necessária para lidar com os desafios inerentes à atividade. Existe o deleite de ter liberdade para criar uma obra sem limites nem barreiras e de desfrutar de um senso divino por comandar vidas ficcionais; enquanto existe também as desvantagens de um ofício eminentemente solitário que se sustenta por uma autocobrança do próprio realizador. Entre tantas questões, o cinema se interessou em abrigar histórias metalinguísticas sobre a arte, especialmente, na literatura, como se vê, por exemplo, em “Adaptação” e “Mais estranho que a ficção“. E reaparece aqui em O AUTOR, produção hispano-mexicana original Netflix.
A adaptação cinematográfica do livro homônimo de Javier Cercas acompanha o sonho de Álvaro de se tornar um escritor bem sucedido numa forma de literatura renomada, abandonando a vida tediosa de trabalho num cartório e não se equiparando à carreira de sua esposa Amanda (escritora de um potencial best-seller premiado, porém criticado pelo marido por ser, aparentemente, voltado para as massas). Os vários cursos de escrita a que se dedicou não modificaram sua trajetória, apenas a descoberta da traição da esposa e sua mudança para viver num condomínio.
A força do filme reside no desenvolvimento do roteiro e das camadas dramáticas de Álvaro. Obcecado pela necessidade de escrever um romance digno, o protagonista se sente impulsionado pelo professor do curso de escrita a investigar e explorar a realidade como fonte de sua história. Desvirtuando esse conselho, ele passa a manipular as vidas dos vizinhos de seu condomínio em busca de material literário: a síndica frustrada com o casamento, o casal de imigrantes mexicanos em dificuldades na Espanha e o ex-militar solitário de ideias autoritárias. Os atos condenáveis por Álvaro (que prejudicam econômica e emocionalmente os vizinhos) são instrumentalizados para debater os limites entre ficção e realidade, de onde se pode retirar inspiração para enfrentar bloqueios criativos e como os autores, em última instância, podem ser vistos como seres onipotentes controladores de suas criações.
Os comentários sobre o fazer artístico estão associados à construção de um protagonista complexo e rico de contradições. Álvaro é um sujeito decepcionado com o trabalho no cartório (tendo que conviver com um chefe dominador e um colega de trabalho absurdamente chato), que se coloca o objetivo de se tornar escritor como válvula de escape e refúgio das frustrações existenciais – provavelmente, o controle exercido por um autor diante de sua história fosse a direção pretendida por Álvaro em sua vida. Entretanto, a inveja e os ressentimentos, depositados no sucesso da esposa e no término do relacionamento, são os estopins para o desejo de transformação. A atuação de Javier Gutiérrez é hábil em demonstrar através de sutilezas corporais o estado de espírito do personagem: a postura acanhada e pouco decidida no primeiro ato quando era confrontado pelo professor, pelo chefe e pela chatice incômoda do colega de trabalho; a explosão emocional em discussão com Amanda que provocou uma expressão irritadiça de sua face; e os pequenos contentamentos diante das manipulações realizadas sobre os demais personagens com um discreto sorriso de canto de boca.
A sensação de vazio que recobre Álvaro também é demonstrada nos dois principais cenários em que ocupa. Sonia Nolla cria um escritório no cartório apertado e desconfortável pela numerosa quantidade de papéis desorganizados em pilhas por todos os cantos; além de uma nova residência que reflete seu vazio existencial pela falta de mobília e pelas paredes muito brancas. Faltou apenas ao design do filme explorar de forma intensa todo o condomínio e as relações entre seus moradores. No quesito composição fotográfica, o trabalho de Paul Esteve Birba recorre ao jogo de luz e sombras para criar a ambiguidade do protagonista e sua visão incompleta dos vizinhos (o casal mexicano conversando na cozinha de sua casa e ouvidos por Álvaro de seu banheiro sempre recortados por silhuetas na parede).
A sensação de incompletude, não como algo positivo, está presente também na direção de Manuel Martín Cuenca. Por um lado, os planos simétricos enquadrando os personagens sempre ao centro do quadro são um estilo que pouca se comunica com a narrativa. Por outro, coloca sua câmera para enquadrar Álvaro e mostrar suas reações às falas destemperadas de indivíduos com quem interage (decisão eficiente para acompanhar ininterruptamente seu protagonista) e faz cortes evocativos para criar sentidos incomuns e até levemente cômicos (como o momento em que o ex-militar sr. Montero aponta sua arma para Álvaro para, supostamente, alvejá-lo e, então, o diretor corta para um plano de uma cabeça de alce empalada na parede, vítima de uma morte a tiro).
À medida que Álvaro avança em sua escala de deterioração e descompasso mental e emocional, três perguntas lançadas no início do filme para ilustrar a criação de um personagem ganham ainda mais importância: “para onde o personagem quer ir?”, “quais os obstáculos enfrentará na jornada?” e “por que quer ir para lá agora?”. Tais perguntas, especialmente, a última, movem um filme curioso e imprevisível. Características que exigem do público um trabalho mental constante para examinar quais sentidos a arte pode ter. Inclusive por indivíduos doentes emocionalmente, como Álvaro.
Um resultado de todos os filmes que já viu.