“APÓSTOLO” – Potência desperdiçada
O folk horror com temática religiosa parece ter sido reavivado recentemente com o lançamento de “A Bruxa” (2015), um hit indie escrito e dirigido por Robert Eggers. Vindo de uma tradição longínqua, que tem em “The Wicker Man” (Robin Hardy, 1973) seu maior exponencial histórico, continua sendo explorado por filmes como “Midsommar” (Ari Aster, 2019), por exemplo. É nesse nicho que encontramos APÓSTOLO, escrito e dirigido pelo galês Gareth Evans. O filme britânico comprado pela Netflix possui todos os elementos do “terror rural”: ambientado em uma ilha afastada, seus personagens são regidos por uma própria moralidade, nesse caso a de um culto religioso com um líder carismático e autocrático, com uma pulsão de natureza regida por uma deusa local, que provê os frutos, a vida. Mas sua má execução em alguns aspectos acaba afastando o filme dos anteriormente citados em termos de qualidade.
A premissa do roteiro não é nem um pouco econômica: no final do século XIX, três homens frustrados com os desmandos reais decidem fugir até uma ilha galesa afastada e criam um culto baseado em uma divindade feminina que aceita sacrifícios de sangue (purificações) para garantir a fertilidade da terra. Passados alguns anos, as dificuldades financeiras em manter a prática os levam a raptar uma moça rica em troca de resgate. Thomas Richardson, seu irmão, um antigo missionário cristão, se infiltra na seita para tentar resgatá-la. Ele conta com a ajuda de Jeremy, que tem um romance proibido com Ffion, e também com Andrea, filha do líder da seita, Malcom Howe.
Gareth Evans, um diretor com experiência em filmes de crime indonésios, se aventura no horror com boas projeções atmosféricas. O isolamento, os códigos incompreensíveis do culto e o poder quase infinito de vida e morte do profeta Malcom (em um bom momento de Michael Sheen) garantem ares tenebrosos, quase sufocantes. Divindades femininas são arquétipos poderosos em comunidades dominadas por homens. O sangue, a fertilidade, o nascimento e a morte latejam em um campo gravitacional que necessita do florescimento feminino. A ascensão e queda de um culto mal intencionado também é um tema do filme. A fé é questionada quando nada parece caminhar para o que se deseja. O líder, desesperado, é capaz de qualquer artimanha para manter seu poder e a ordem no seu rebanho.
Embora o diretor pareça compreender o poder da simbologia, Evans não abusa muito dela. E é justamente aí que surgem os problemas. Ele tenta criar um mundo alegórico, mas acaba não dando conta dele. Sua principal deficiência talvez seja a condução do arco dramático de Thomas e a exploração rasa do tema religioso, que, embora inunde a obra, nunca é tratado de forma digna. Como um pregresso missionário que perdeu a fé em Deus, ao entrar naquele mundo ritualístico ao extremo, o personagem deveria estar lidando com algo que o sufoca, mas isso não é exposto. Os dilemas religiosos, por conseguinte, não são abordados com profundidade, caindo por vezes no artifício da intriga palaciana, um sopro descompassado e bem distante das questões de poder shakespearianas. Nem as regras forjadas pelo profeta são justificadas, de tão inorgânicas. Cultos e fanatismo religioso são instituições problemáticas e fascinantes até os dias de hoje. O que torna uma pessoa alienada de tudo o que não pertença àquele universo? Frustração? Medo? O diretor perde grandes oportunidades aqui. Oportunidades que Aster e Eggers não perderam.
Ou melhor, cria expectativas que não se concretizam. De fato, esse mundo prometido por Evans, que surge no início em tensões de roteiro, não é plenamente desenvolvido, se perdendo em movimentos fugidios. A Deusa da ilha, uma potência feminina, também é natureza, a origem de tudo. Por se tratar desse espaço geográfico – uma gélida ilha na Grã Bretanha – ecos da religião dos Celtas podem ser ouvidas bem de longe. A relação com a natureza (especialmente florestas) e a divindade feminina são algumas delas. Em contraponto, a submissão da mulher e da natureza por homens ambiciosos surge no clímax do filme, quase como um alento.
A cinematografia de Matt Flannery é uma das responsáveis pelo clima sufocante. Gélida e tímida, explode em momentos mais sanguinolentos. Inclusive, algumas opções estéticas por vezes são questionáveis. Há um flerte com o torture horror injustificável, que atrapalha mais do que ajuda. A possível relação de cultos antigos com tortura medieval não soa orgânico, sobrando na tela. O que demonstra que nem Evans nem Flannery conseguiram criar uma identidade visual operante e convincente. Uma lástima.
Embora não tratemos aqui de um filme ruim (de forma alguma!), “Apóstolo” peca ao propor algo que não entrega ao gerar uma expectativa que será sanada de forma apenas razoável. Há mais potência do que concretude.
Doutora em zumbis. Péssima em escrever bios.