“O AMANTE DUPLO” [FVCF/2018] – Reflexos de um estilo exacerbado
Alguns diretores são criticados por uma mão pesada na condução da câmera, tão presente que seus estilos gritam a cada nova imagem e sequência. Desse mal sofreu Alejandro G. Iñárritu, por exemplo, em “Birdman” e “O regresso“. O mesmo vale para O AMANTE DUPLO de François Ozon, sentido em intervenções significativas (e numerosas) a cada minuto de seu filme. Na trama, acompanhamos Chloé enquanto tenta curar uma dor na barriga que julga ser um problema psicológico. Ela se consulta com Paul até se apaixonar por ele e começar um relacionamento. A partir daí, procura outro psicólogo e acaba se consultado com Louis, o irmão gêmeo de Paul, do qual nunca tinha ouvido falar.
A produção não pode ser acusada de falta de personalidade ou de apatia na relação com a plateia. François Ozon provoca as sensações do público a todo momento, levando-o a decifrar as peças do quebra-cabeça apresentado e a lidar com um estranhamento constante diante do que vê na tela. As interferências do cineasta são percebidas nas metáforas criadas e nos diferentes recursos mobilizados para encadear a narrativa. Um uso tão diversificado de elementos da linguagem cinematográfica levou a resultados díspares: alguns funcionam, já outros…
O primeiro ato, preenchido pelo convívio inicial entre Chloé e Paul, fornece alguns exemplos bem sucedidos do estilo do diretor. A proximidade construída entre eles é exibida de maneira econômica, encadeando as diversas sessões de terapia através de uma montagem em paralelo e criando uma mise en scène no consultório que os mantém sempre próximos. Vale também comentar como a proximidade e a intimidade crescentes são realçadas pela técnica de split screen: divisão da tela para mostrar ambientes e personagens diferentes simultaneamente – algo construído também graças a uma grande profundidade de campo. O segundo ato, caracterizado pelos encontros entre Chloé e Louis, possui outros tipos de acertos: eles estão afastados no consultório (situação antagônica se comparada a Paul, indicativa de como os personagens estão em conflito eterno) e são filmados, muitas vezes, por reflexos nos espelhos (algo que reforça a separação entre eles, mas também constrói uma rima visual com o tema do filme).
Espalhados por toda a narrativa estão os recursos que apresentam problemas estéticos ou temáticos. No geral, a grande falha está no excesso de estilização que chama atenção demais para o que se está fazendo em detrimento do desenvolvimento da trama e de seus conflitos. Sequências de pesadelo são inseridas e antecipadas pelo público que não se surpreende com elas; raccords gráficos fundindo o órgão genital feminino a partes do olho ou da boca soam bobos; jump scares com a elevação repentina do som e uma trilha sonora de acordes misteriosos fogem do tom e exageram no suspense – todas as sequências em que se tenta construir alguma tensão parecem tolas (o que dizer do momento em que Chloé dorme na casa de sua vizinha!?).
O casal protagonista é ajudado pelo estilo de François Ozon, especialmente no que se refere ao figurino e outros adereços. Marine Vacth cria Chloé como uma mulher ambígua, sexualmente reprimida, confusa diante dos acontecimentos incomuns e envolta numa espiral de sexo e violência. Ainda assim, mostra sua capacidade de decisão para enfrentar os riscos a que está submetida e é associada sempre a roupas pretas e básicas. Jérémie Renier cria dois personagens absolutamente opostos: Paul é tímido, introvertido e discreto, caracterizado por trajes formais sóbrios, óculos e por um corte de cabelo com franja que esconde parte de seu rosto; já Louis é egocêntrico, prepotente e temperamental, caracterizado por trajes elegantes e sedutores, um corte curto de cabelo que valoriza seu rosto e pela ausência de óculos.
A questão dos duplos opostos não é encontrada apenas na atuação de Jérémie Renier para seus dois personagens. O tema central do roteiro aborda a duplicidade dos gêmeos e como seus traços aparentemente idênticos podem ocultar personalidades completamente diferentes. Não só comportamentos diferentes como também complementares dentro de um espectro variado de possibilidades. Nesse sentido, o uso metafórico dos espelhos (observados, por exemplo, no consultório de Louis) expressa o reflexo distorcido que um indivíduo pode ser em relação a outro. Conforme seguimos as pistas deixadas pela narrativa, atentando para a repetição sistemática dos vidros e dos espelhos, podemos antever a reviravolta que acontece no terceiro ato com Chloé. E isso não é algo, necessariamente, negativo. É algo trabalhado minuciosamente pelo diretor para o espectador mais atento acompanhar.
O tema pode ser instigante e algumas técnicas estilísticas podem ser dramaticamente evocativas para a narrativa. Entretanto, “O amante duplo” poderia ter uma balança favorável aos seus méritos se tivesse mais cuidado com alguns recursos narrativos escolhidos. Como essa precaução não acontece, o resultado final é oscilante. Alguns pontos são extremamente positivos, enquanto outros são consideravelmente negativos.
Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês 2018.
Um resultado de todos os filmes que já viu.