“NOTRE DAME” – Caos no caos
Parece paradoxal que um filme com um título tão clássico como o de NOTRE DAME seja tão ousado em termos de linguagem cinematográfica. A ousadia, como se sabe, pode levar à glória ou ao caos. A produção se encaixa no segundo resultado – a sorte é que ele tem pouco menos de noventa minutos.
Maud é uma arquiteta que, mesmo sem se inscrever, magicamente ganha um concurso de restauração da esplanada do metrô de Notre Dame. Enquanto tenta resolver questões pessoais e profissionais, seu nome ganha notoriedade pelo concurso, o que não a ajuda nos impasses que enfrenta.
O texto de Valérie Donzelli (que também dirige o longa, além de viver a protagonista) e Benjamin Charbit se preocupa com os relacionamentos de Maud. Com o ex, Martial, repousa tanto um conflito dramático quanto o alívio cômico; o colega Didier é o coadjuvante sem relevância; a irmã Coco é o clichê da confidente; o chefe Greg é um vilão lateral; e Bacchus é o amor mal resolvido que retorna para complicar a sua vida. Dentro dessas balizas, “Notre Dame” parece uma comédia romântica limitada aos clichês do gênero.
Ocorre que nenhum relacionamento é construtivo na narrativa. Maud não planejou participar do concurso, mas foi a ganhadora, e o mesmo ocorre com outros aspectos da sua vida pessoal. O plot declara que a vida é muito maior que quaisquer planos que se façam, ao mesmo tempo em que, expressamente, ataca o medo da mudança. A vida não tem script, é verdade. Mais que isso, não ter roteiro pode ser melhor do que ter, “Notre Dame” é a prova disso.
Martial (Thomas Scimeca) é o ex cujo rompimento ainda não foi completamente efetivado. É interessante perceber a dificuldade que a protagonista encontra em fazer do pai dos seus filhos um pai de verdade, o que, contudo, gera piadas estúpidas em razão do exagero na infantilidade de Martial. O humor do filme quase nunca é funcional, normalmente pelos seus excessos (a falta de higiene de Martial ao cozinhar) ou pela simples falta de graça (a britadeira fazendo a mesa balançar). A parte cômica da película é deplorável; a séria, quase aceitável.
Enquanto Virginie Ledoyen e Bouli Lanners têm personagens (Coco e Didier, respectivamente) inúteis, Pierre Deladonchamps tem em Bacchus uma personagem relevante, mas sem brilho. Embora fique claro que o relacionamento entre Maud e Bacchus tenha sido precocemente interrompido, a razão para isso é obscura, lacuna que prejudica demais a narrativa. Não há como aceitar a dificuldade da protagonista em dar a ele uma segunda chance porque ela não tem motivos evidentes para tamanha rejeição. Nos primeiros minutos em que ele aparece, o longa dá a entender que ele era obcecado por ela, para depois mudar para um apaixonado que se frustrou pelo término.
Profissionalmente, Maud é objetificada pelo seu chefe, Greg (Samir Guesmi), que, por exemplo, se aproveita de questões contratuais para se beneficiar do trabalho da funcionária que nunca valorizou (nem sequer tratou bem). Afetivamente, porém, não faz sentido que a protagonista objetifique Bacchus, que se assemelha a um desinteressante adolescente apaixonado. Do ponto de vista narrativo, assim, “Notre Dame” é feito de inverossimilhanças (a prefeitura de Paris não consegue bons advogados?) e subtextos tratados de maneira completamente rasa (o julgamento popular, que poderia ser atualizado para a cultura do cancelamento).
Não seria exagero afirmar que a mise en scène da produção é também uma inverossimilhança em si mesma. Qual o motivo, por exemplo, para as personagens estarem sempre com as mesmas roupas em um intervalo de alguns meses? Outra opção estilística questionável é o aproveitamento de gêneros, técnicas e referências que tornam a obra estranha e nada memorável. O incidente incitante é filiado à fantasia; o uso de narração voice over é despropositado; o romance é diminuto (a cena em que Maud e Bacchus dançam uma valsa, aparecendo apenas suas silhuetas); e a referência a “E.T.: o extraterrestre” é uma ofensa ao clássico. Como se não bastasse a colagem artificial, estão lá também animação (a apresentação com óculos de realidade virtual), cinema mudo (a sequência dos turistas) e musical (momento em que o filme ressalta, pela enésima vez, que assumiu o nonsense). É possível existir ordem no caos, assim como caos na ordem. “Notre Dame” é um caso de caos no caos.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.