“NOSTALGIA” – Liberdade sabotada pelo didatismo
A apropriação da memória pelo cinema deu lugar a diversas experimentações. Da dilatação temporal a ressignificação de registros documentais, a suspensão da imagem cinematográfica permite inventivas explorações de bagagens pessoais. Isso aproxima o audiovisual de uma potência pautada pelo sensorial, despreocupada com o processamento racional de certas narrativas. Inserido nesse local artístico, essa digressão pelo lembrar é o que o italiano NOSTALGIA almeja fazer.
Após anos cuidando vivendo no Egito, Felice Lasco retorna à cidade em que nasceu para cuidar da mãe doente e descobrir um lugar bem diferente do que o recordado. O reencontro com um velho amigo traz diversos resquícios de uma vida anterior nunca realmente resolvida, que lhe levará a questionar diversos traços da sua existência.
Dirigido por Mario Martone, o filme se esmera na construção de uma Nápoles bastante caracterizada por sua arquitetura. O local, e especialmente o ocioso bairro de Rione Sanitá, ganha textura através dos postes quentes que intercalam a escuridão da noite. Os paralelepípedos transgridem uma geometria paciente e sugerem um deslocamento: Felice (Pierfrancesco Favino) se sente à margem onde antes pertenceu.
Esse sentimento último se transmuta na tentativa de reconexão com Oreste (Tommaso Ragno), cuja presença dissolve o andamento aparentemente claro do filme. A dubiedade por detrás da personagem desafia a clareza das recordações de Felice, levando à variação entre a suposta estabilidade do passado e o afastamento para com o presente. Apesar dessa lógica também se traduzir na exploração espacial mencionada anteriormente, é na definição desse recurso que o filme passa a abrir mão de sua individualidade.
A potência de um filme lírico, e que flerta em sua abertura com a valorização de um espaço onírico, ainda imerso em sua verossimilhança mas pela ótica de uma lente atenta a atmosfera emocional das personagens, começa a se diluir em clichês de contraposição entre duas linhas narrativas.
Tal um recurso que acaba não cabendo na proposta de planos longos e pacientes em guiar o olhar do espectador, contradizendo a montagem de didatização dos avanços narrativos. Nem por isso, entretanto, é esvaziada a relação intrigante entre as personagens, reflexo de uma busca por pertencimento que é constantemente adiada. É como se cada camada revelada sobre Orestes estivesse ali como projeção de Felice, se transmutando na figura que tenta compreender conforme seus aspectos se dissolvem pelo ar.
Quanto mais as suas áureas se transmutam, mais distante o protagonista se vê daquela espaço. Isso permite a câmera reverter os planos geometricamente pensados, do início, com o preenchimento do espaço negativo, dentre outros recursos estéticos. Existe uma adaptação do ambiente em função da psique daquele sujeito, que até resgata o frescor linguístico de seu início.
Ainda assim, e mesmo em meio a interessante maneira como o som passa também a ser mais valorizado, desenhando dramas diegéticos que, mesmo externos a Felice, adicionam a sua própria confusão entre o público e o privado, boa parte das escolhas acabam sabotadas pelo marasmo da mesa de edição.
É como se o projeto abdicasse da confiança exibida nos primeiros minutos, buscando um refúgio em um lugar comum que se distancia da poética do fluxo. Surge assim a contradição de um projeto que não se decide entre a clareza da própria narrativa e a experimentação do próprio DNA.
Surge nisso, inclusive, uma tentativa, ainda que inconsciente, de se tentar justificar, em implicações de uma vida antiga, certos traços da personalidade de Felice. Tal escolha reduz a abstração emulada por certas passagens, e cujo brilho se ancora justamente no reconhecimento de um estado constante de transformação – como nas ruas transformadas de Nápole, e nos outros que não conseguimos mais reconhecer -, mais do que um estado inicial ou final.
Por conta disso, tem-se em “Nostalgia” um projeto que bem compreende a maleabilidade de seus campos mentais, dissolvendo as personagens em função de seus fluxos de consciência. Nem por isso, todavia, a estruturação do todo acaba acompanhando essa liberdade, sabotada por uma tentativa, ainda que talvez inconsciente, de higienização dos próprios pensamentos.