“NOSFERATU” (2024) – Autoralidade precária
O livro “Drácula”, de Bram Stoker, rendeu diversas adaptações cinematográficas. Dentre os clássicos, destacam-se “Nosferatu”, de 1922, e “Drácula”, de 1931. Também merece destaque “Nosferatu”, de 1979, que tem a mesma base do homônimo, mas toma mais liberdades criativas em relação à obra de Stoker. Quanto ao NOSFERATU de 2024, a inspiração pode ser igual, mas sua falta de identidade o aproximará mais das adaptações esquecidas do que dos clássicos inesquecíveis.
Wisborg, Alemanha, 1938: Ellen e Thomas Hutter são recém-casados e iniciam os planos da vida a dois. O patrão de Thomas, Knock, determina que ele viaje a um país distante para formalizar a compra e venda de uma propriedade da sua cidade por um cliente rico, o conde Orlok, negociação com a qual o jovem pode lucrar financeiramente. Seu prejuízo extrapatrimonial, contudo, está muito além da sua imaginação.
Como filme de gênero – o terror -, o diretor e roteirista Robert Eggers não poderia ser mais eficiente. O macabro tem forte presença (dos nauseantes ratos aos cenários de cemitério), causando pavor em cenas impactantes para as personagens (como quando Orlok se aproxima de Thomas após seu corte, em que o close demonstra bem o seu pânico) e também para o espectador (como na cena dos murmúrios de um vassalo do vampiro ou quando este desfere ataques impiedosos). Sem dúvida, Eggers cria uma atmosfera em que, no universo diegético, o real (a idosa da estalagem implorando para Thomas desistir) é tão amedrontador quanto o aprioristicamente onírico (a cena com os ciganos).
Eggers entrega mais que um filme de terror – com todas as convenções do gênero, como jump scares e possessão exteriorizada por convulsões, por exemplo -, mas um filme de terror em nível excelente. No aspecto gráfico, a fotografia é perenemente gélida, independentemente do local, com tons acinzentados e muita neve, irrompida apenas pelo âmbar das tochas e das velas que sugerem que, talvez, seja possível enfrentar aquele mal. No design de produção, a morada do Conde se assemelha a um castelo de arquitetura medieval e estrutura claustrofóbica, e mesmo os cenários abertos transmitem a mesma sensação (como quando Thomas é recebido pela carruagem, não conseguindo se mover naquela estrada enevoada e preenchida pela neblina noturna). No aspecto sonoro, os ruídos levam o espectador a cada local, seja pelo sopro do vento, pelo cair dos flocos de neve ou pelo rangido de uma ponte.
Enquanto o vampiro de F. W. Murnau (o de 1922) é a representação do expressionismo alemão, com visual estilizado e distorcido, o de Werner Herzog (o de 1979) é mais realista, representando mais alguém doente do que um demônio. O de Eggers se aproxima mais do primeiro, de modo que a maquiagem e o figurino esplendorosos escondem que Bill Skarsgård está ali embaixo. Com isso contribui ainda o design de som na voz do Nosferatu, uma voz extremamente grave e rouca, com a prosódia lenta e arrastando a letra “r”. O estilo reforça a pujança de Orlok, cujos diálogos são ameaçadores e constantemente no imperativo. Os diálogos, inclusive, são uma virtude do roteiro, transitando entre a ironia provocativa – como a fala de Knock (Simon McBurney, ótimo) de que Orlok “já está com um pé na cova” – e a reflexão poética – como a elucubração de Ellen (Lily-Rose Depp, prejudicada pela aparente indecisão quanto à psique da personagem) junto a Anna (Emma Corrin, sem muito espaço) de que estaria sendo chamada.
No elenco estão ainda Nicholas Hoult, que faz de Thomas um homem frágil, mas ainda assim corajoso, Aaron Taylor-Johnson, que tem em Friedrich um cético de poucas camadas, Ralph Ineson, repetindo a parceria com Eggers de “A bruxa”, e Willem Dafoe, cuja presença magnética enriquece o perturbado professor von Franz. Não obstante o bom elenco, as personagens são singelas em razão do subdesenvolvimento dos subtextos da obra-base. O sexo é sinônimo de força ou sucesso: Ellen deseja mais do que o marido entrega, o fato de dormirem em camas separadas é um detalhe interessante e traz uma referência histórica do Cinema; o imponente conde deseja possuir a moça; Thomas não prioriza a reprodução, ao passo que o bem-sucedido Friedrich está ampliando a prole. “Nosferatu” é um pouco sobre ceticismo e o professor von Franz ironiza a cegueira resultante da “luz da ciência”, algo que pode corroborar o contexto pós-Iluminismo, mas não é problematizado. O foco está na ganância de Thomas, contraposta à cobiça de Orlok. Como dois pecadores, os dois recebem sanções que soam como um ato divino.
O que atrapalha o longa é que, se o roteiro não é original, nem aprimorado, e se a estética não é saliente, o que lhe resta? A timidez na adaptação do texto faz com que não haja surpresas. A produção tem nível técnico excelente, mas não inova sequer dentro do seu gênero. A versão de Murnau é inesquecível porque (dentre outros fatores) reúne as principais características do expressionismo. A de Herzog, porque se opõe a ela do ponto de vista estético, voltando-se mais ao realismo. E Eggers, o que apresenta? Há um pouco de ambas, muito do que já foi visto e quase nada de autoralidade.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.