“NÓS” – Alegoria original em texto frágil
Como seria se os párias da sociedade se rebelassem? O que ocorreria se as pessoas invisíveis, aquelas marginalizadas e desprezadas por todos, resolvessem aparecer e tomar o controle de tudo e de todos? A união dessas pessoas seria, no mínimo, potencialmente lesiva, não? NÓS é um filme que pensa nessa hipótese através de uma alegoria deveras original.
No filme, a protagonista Addy resolve passar um período na praia com seu marido Gabe e seus filhos Zora e Jason. O que era para ser uma viagem de família para descansar se torna um terror quando um misterioso grupo chega na sua casa.
Depois do ótimo “Corra!”, Jordan Peele ganhou destaque na indústria, gerando altas expectativas para a sua segunda obra como diretor. E há uma melhora sensível nesse quesito: a violência não é espetacularizada, mas justificada em seu contexto; além disso, a estética cria uma atmosfera sombria eficaz. No prólogo, por exemplo, o parque de diversões macabro se torna ainda mais assustador na “Floresta de Merlin”, um recinto espelhado que consegue ser mais hostil que a praia deserta e sob temporal à noite. Peele faz bom uso da penumbra em outros momentos da película, deixando o espectador apreensivo para entender o que está ocorrendo.
O filme tem um design de som muito bom, criando ruídos compatíveis com o gênero e uma trilha musical utilizada com inteligência. As canções com letra são usadas de maneira intradiegética para interagir, empírica ou semanticamente, com a narrativa; já as instrumentais investem no uso de cordas. A música-tema é grande acerto de Michael Abels ao misturar de maneira interessante a percussão similar aos ritmos africanos e o canto erudito. Kym Barrett consegue dar vida ao figurino, seja pelo simbolismo do vestuário avermelhado das sombras (nome dado ao elemento sobrenatural do longa), seja pelas sagazes referências em camisetas (como “Thriller” e “Tubarão”).
Embora Peele não apresente uma direção impecável – a cena em que a família está sentada à mesa, por exemplo, é um verdadeiro descalabro, com injustificada quebra da regra dos cento e oitenta graus e exagero incômodo e absurdo de jump cuts -, houve um aprimoramento em relação a “Corra!”. O mesmo não se pode dizer, entretanto, do roteiro.
O script elabora uma alegoria criativa sobre as pessoas marginalizadas, conectando-a a uma passagem bíblica sobre uma desgraça inescapável e sustentando a necessidade de união entre as pessoas (de uma maneira bem literal). O plot tem uma ideia similar ao platônico “Mito da Caverna”, trazendo questionamentos socialmente oportunos. Por que alguns têm tantas alegrias enquanto outros vivenciam apenas desgraças? Como podem as pessoas privilegiadas desperdiçar suas condições favoráveis? Um simples brilho labial pode representar alegria imensurável para quem não tem nada (soa estranho, mas o exemplo está no filme).
É extremamente positivo que Jordan Peele tenha adicionado comédia à sua trama, como na referência a “Esqueceram de mim”. Entretanto, o roteiro tem diversas falhas, a começar pela construção das personagens, extremamente vazias e unidimensionais. O que se sabe sobre Gabe é o fascínio por lanchas; sobre Zora, que é viciada no celular; sobre Jason, que gosta de assustar. A rigor, nem mesmo a protagonista Addy é bem desenvolvida, salvando-se apenas por força da ótima interpretação de Lupita Nyong’o. A atriz domina todas as cenas em que está presente em razão do olhar penetrante e convincente, demonstrando talento também na manipulação vocal. Medo e desespero, dentre outras emoções, são palpáveis graças ao seu trabalho.
Estruturalmente, há falhas indesculpáveis no longa. Nessa ótica, o texto é mal elaborado, pois consideravelmente rocambolesco (o que faz com que a produção tenha duração exagerada). Em diversas passagens, o filme se torna um jogo de gato e rato repetitivo e monótono – até o incidente incitante, é quase um sonífero, vez que arrastado em demasia. O roteiro padece de inconsistências que prejudicam o trabalho final. (Possíveis spoilers a seguir) O plot twist, por exemplo, é escancaradamente forçado e incoerente (apesar de previsível), contradizendo tudo que a sombra de Addy havia dito em seu discurso. Mais: se as sombras repetem os movimentos, como saíram do subsolo? Por que a sombra de Gabe não usa óculos, mas a de Jason tem máscara e isqueiro?
Para quem não se importa com um roteiro bem construído, “Nós” é muito satisfatório enquanto filme de terror, já que o clima aterrorizador se faz inegavelmente presente. Além disso, é verdade que, para o gênero, Jordan Peele foi muito além da maioria ao construir uma narrativa alegórica original e intranscendente. Contudo, faltou um roteiro mais bem elaborado para dar status de excelência à película.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.