“NINGUÉM TÁ OLHANDO” – Livre (controlado) arbítrio
“A vida não é aleatória por acaso”. Essa frase, repetida algumas vezes em NINGUÉM TÁ OLHANDO, possui um carga de humor quando se analisa a junção das contraditórias ideias de planejamento e casualidade. Ao mesmo tempo, ela traduz a articulação temática e estética da nova série brasileira disponível na Netflix em torno dos dilemas entre livre arbítrio e obediência a um sistema maior. Tudo isso sob a roupagem de uma série de comédia divertida e deliciosa criada por Daniel Rezende, Carolina Markowicz e Teo Poppovic.
Dividindo a primeira temporada em oito episódios, a narrativa se inicia construindo um universo próprio que possui convenções muito particulares, mas não se distancia da realidade tradicional: existe um Sistema Angelus, em que figuras angelicais ruivas, de blusa branca e gravata vermelha trabalham protegendo a humanidade de acidentes cotidianos ou perigos mais graves. Após a chegada do novato Ulisses, a organização vira de cabeça para baixo devido aos questionamentos sobre a arbitrariedade das ordens diárias recebidas e a uma descoberta chocante feitos por ele. A partir daí, influencia Greta e Chun a também se rebelar contra o status quo.
O primeiro capítulo é feliz em apresentar como a sorte, imaginada pelo humanos como razão para se salvarem dos problemas do dia a dia, na verdade seria obra de anjos da guarda chamados Angelus. Através da técnica do in media res de exibir os efeitos desastrosos se os indivíduos vivessem por conta própria e com a introdução de um calouro na função, o espectador tem um mecanismos que servem como guia por dentro daquele mundo. Vale igualmente destacar que as explicações iniciais não são excessivamente didáticas, já que elas aparecem sob a forma do manual de instruções lido pelo protagonista após sua geração.
A discussão acerca da aleatoriedade ou não da existência é a grande perspectiva trabalhada, perpassando reflexões religiosas e filosóficas quanto a um destino previamente traçado ou um caos desordenado sem explicações e sentidos. Tal estrutura dramática é amarrada tanto no espectro cristão de anjos e deuses quanto na dimensão prosaica de um escritório, por compartilharem a dubiedade entre seguir normas ou criar seu próprio modus operandi. Em termos narrativos, são questões que transparecem quando Ulisses, Greta e Chun passam a criar suas missões, intervêm diretamente na vida dos humanos e duvidam da presença de um chefe (Deus).
Preliminarmente, o roteiro aborda a parte celestial do universo diegético através de elementos da história e das escolhas visuais de Daniel Rezende. No primeiro caso, os anjos têm poderes especiais, como conseguirem ficar invisíveis e causarem calafrio nas pessoas pelo simples toque. No segundo, a edição de som traz ruídos de reverência cerimoniosa quando alguém se aproxima da sala do chefe ou nos instantes em que algum conflito típico do cristianismo emerge (por exemplo, a incapacidade de qualquer criatura de entender seu propósito de vida e de lidar confortavelmente com crises de identidade); e os enquadramentos apostam no contreplongée e na grande profundidade de campo para ilustrar as cenas em que os personagens devem estar inferiorizados em comparação com as obrigações que cumprem. Além disso, a questão da liberdade de ação ganha mais significados por envolver o ponto fundamental do livre arbítrio típico da fé cristã: é algo existente mesmo na trajetória bem humorada de Ulisses, que o leva a fazer perguntas indesejadas (“se os humanos não nos veem, por que se importar com a gravata?”) e desrespeitar o regimento básico.
O comportamento do protagonista também é responsável por ironizar a incoerência da rotinização de uma burocracia. Descreve-se o Sistema Angelus como uma repartição pública comum: os anjos são funcionários de uniforme reconhecível que desempenham suas tarefas; o comandante não é visto pelos empregados; a hierarquia inclui “pessoal de campo”, fiscais, supervisores e arquivista; o dever de respeitar as quatro regras essenciais (cumprir apenas a ordem do dia, nunca aparecer para os humanos, não ajudar humanos fora da ordem do dia e nunca entrar na sala do Chefe); e a necessidade de fazer relatórios frequentes sobre a ordem do dia transmitida para serem, mais tarde, arquivados. Visualmente, o design de produção concebe um escritório composto por áreas de relaxamento, treinamento, apresentação das missões, sala do fiscal e do Chefe e de um grande arquivo de imensas prateleiras; analogamente, os planos abertos, a elevada profundidade de campo e o posicionamento dos atores na lateral do quadro também ressaltam as diferentes etapas de funcionamento do local.
A oposição existente no debate temático reveste o desenvolvimento dos personagens. Ulisses é a figura que transforma todos a sua volta em razão de uma postura questionadora cômica que não aceita regras incoerentes, ao mesmo tempo que precisa encontrar um equilíbrio entre o desafio irresponsável e uma individualidade sadia. Chu é o sujeito que oferece momentos de humor por seu apego a noções como obrigação e obediência criar embates internos; Greta é a mais exaltada do escritório com reações pouco esperadas para um anjo e uma jornada de ceticismo crescente quando suas crenças são abaladas; Fred é um fiscal representativo dos discursos enganadores possíveis nas religiões, quando ele supervaloriza objetos como se fossem mensagens divinas. E Miriam não se encaixa na sociedade por ter ideias políticas e sociais mais progressistas, ainda que tais princípios não a protejam de crises de identidade e questionamentos emocionais.
Compondo uma narrativa complexa sobre filosofia, religião, livre arbítrio, sentido da vida e destino plenamente traçado, “Ninguém tá olhando” ainda por cima tem a habilidade de criar uma comédia inteligente. O humor jamais enfraquece os temas e abordagens trabalhados, muito graças ao tipo de universo estabelecido que torna o inusitado e o nonsense como marcas orgânicas. Acompanhar os anjos colocados no mundo rotineiro dos homens, através dos xingamentos que dizem, das tecnologias modernas que usam e dos conflitos amorosos em que se envolvem, faz com que os oito episódios sejam deliciosos e instigantes intelectualmente. Inclusive, a indicação de uma segunda temporada é o símbolo expressivo dessas várias qualidades.
Um resultado de todos os filmes que já viu.