“NEM UM PASSO EM FALSO” – Sobre a ambição
É uma ironia que um filme aparentemente pouco ambicioso trate, justamente, da ambição humana. Na vida e na arte, o crime toma a forma da oportunidade, isto é, da chance de catapultar uma pessoa a um patamar que licitamente ela provavelmente não alcançaria. NEM UM PASSO EM FALSO é um filme de crime no qual as personagens querem, de fato, mudar de vida. O mais interessante, todavia, é que o elastecimento das ambições agrega um risco cujos desmembramentos se tornam imprevisíveis.
Detroit, 1954: Curtis, Ronald e Charley são reunidos por um contratante misterioso para praticar um crime simples de coação para obter um documento. Eles não se conhecem nem têm noção do que consta no documento, mas o lucro da empreitada, somado à sua simplicidade, é sedutor o suficiente para que a aceitem.
Steven Soderbergh tem mão pesada na direção. Nos minutos iniciais, Curtis (Don Cheadle) anda pelo bairro enquanto os créditos, com fonte retrô, associados ao estilo musical da época, ganham o protagonismo. Quando a personagem ganha o destaque, é possível ver melhor a lente grande angular que Soderbergh utiliza para filmar o longa. A imagem fica extremamente distorcida, o que acaba sendo coerente porque o cineasta quer simular a filmagem da época. Assim, o campo tem formato arredondado e suas pontas, em cenários escuros, ficam pretas. Pode parecer um exagero, mas a estética de distorção da imagem serve para o propósito de ambientação.
O fato de Curtis ser negro também contribui com a ambientação, como se denota do racismo praticado por Ronald (Benicio Del Toro), que é naturalizado (Curtis não gosta, mas sua indignação é consideravelmente contida), e das gangues a que cada um deles é associado. Curtis e Ronald parecem opostos: o primeiro é esperto e rápido; o segundo, falastrão (certamente não era necessário falar da secretária do chefe de Matt na frente de Mary) e covarde. Porém, o crime os une e, com a finalidade comum, eles deixam as animosidades de lado (ao menos em teoria).
O roteiro de Ed Solomon divide a narrativa em duas partes. Na primeira, o importante é a dinâmica entre, de um lado, o trio de criminosos Curtis, Ronald e Charley (Kieran Culkin) e seu contratante intermediário Jones (Brendan Fraser), e, de outro, a família Wertz. Curtis e Ronald não têm plena ciência do acerto entre Jones e seu real contratante, tendo como Charley uma espécie de líder na prática delitiva contra a família. Na verdade, Matt (David Harbour), Mary (Amy Seimetz) e seus filhos Matthew (Noah Jupe) e Peggy (Lucy Holt) não são os alvos do crime, são também intermediários cujo alvo é o chefe de Matt, Mel Forbert (Hugh Maguire).
Nessa primeira parte, pouco importa o que consta no documento que os criminosos querem que Matt subtraia do chefe, pois o desfecho relativo à família gera um suspense que Soderbergh aproveita bem (a cena da ligação é ótima). A identificação cinematográfica secundária é também mais fácil, sobretudo em razão da posição de vítima dos Wertz. Na segunda parte, contudo, a família tem bem menos importância e novas personagens aparecem. Um primeiro problema é que as novas personagens, interpretadas, dentre outros, por Jon Hamm e Ray Liotta, têm participação pequena demais para gerar algum envolvimento do espectador. Por outro lado, a questão da ambição ganha novas camadas, além disso, a instabilidade é maior, seja pelas novas personagens, seja pelas consequências dos atos do trio inicial. De todo modo, a mudança na direção do plot o torna menos atraente, ainda que mais imprevisível.
“Nem um passo em falso” tem um elenco muito qualificado (embora algumas peças sejam subaproveitadas) e é tecnicamente primoroso. Visualmente, a cor vermelha (na porta da família Wertz e nas roupas das vizinhas, por exemplo) é indicativo imagético de perigo, ao passo que a luz amarelada dos cenários fechados transmite uma atmosfera soturna que reforça a época e simboliza a criminalidade que permeia a trama. As máscaras usadas por Curtis, Ronald e Charley, igualmente, possuem duplo sentido, pois dão tranquilidade para Mary (que reflete sobre o uso de máscaras no delito) e refletem o humor inesperado que o longa apresenta (o uso de máscaras daquele tipo é risível). Há um lado cômico latente que enriquece a obra – o nome do hotel em que Paula se hospeda (Humpty Dumpty), os socos que Matt desfere (de uma canastrice escancarada) etc. -, porém a singeleza dramática a prejudica.
Não há dúvida que o filme é tecnicamente muito bom. O roteiro não tem pontas soltas e a mise en scène é sólida. Entretanto, “Nem um passo em falso” parece uma caminhada em círculos, pouco evoluindo em relação à ideia central da crítica à ambição humana. Arquiteta-se um edifício pomposo (que sequer parece a intenção inicial) para dentro dele colocar concepções de mundo unidimensionais e frias. Talvez a ambição da arte não seja tão pequena quanto parece. Se for esse o caso, o filme cai bastante de nível.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.