“NÃO HÁ MAL ALGUM” – Uma nova perspectiva sobre o tema [44 MICSP]
O Irã é um dos países que ainda adota a pena de morte como sanção para alguns crimes. A questão não é tão simples quanto parece: o Estado impõe uma punição que pode gerar consequências para terceiros que não têm relação com o crime pelo qual o executado foi condenado. Não se trata apenas da família do executado, mas também do executor, que é coagido a ceifar a vida de outro indivíduo. Pode ser que isso lhe seja irrelevante, mas é também possível que deixe cicatrizes profundas. É este o tema principal de NÃO HÁ MAL ALGUM.
Quatro homens bem diferentes são colocados na mesma situação: executar uma sentença que condena alguém à morte. Eles questionam: até que ponto podem se dizer livres? Em que medida podem ser responsabilizados pelo ato praticado? Negar-se a executar pode ter efeitos deletérios, mas executar também pode ter consequências dolorosas, capazes de afetar os próprios executores e as pessoas com quem se relacionam.
“Não há mal algum” é dividido por Mohammad Rasoulof em quatro capítulos, cada um com a história do homem mencionado, que não necessariamente é o protagonista. O primeiro deles, que recebe o nome do filme, é o mais frágil. O longa mostra a rotina de Heshmat (Ehsan Mirhosseini) no que se refere à vida pessoal e ao trabalho, colocando-o como uma pessoa comum. O assunto principal não é diretamente enfrentado, salvo no último plano, que serve como cena impactante em tese (e não na prática). Desse modo, acaba sendo o mais frágil, pois a ideia governante é reduzida a um único plano, que tem impacto pelo conteúdo gráfico, não pela construção da cena.
A segunda história é a de Pouya, intitulada “Ela disse ‘você consegue”. O ator que interpreta o protagonista, Kaveh Ahangar (o melhor ator, na melhor das quatro histórias), demonstra absorver as nuances da obrigação para além de querer e não querer. Filosoficamente, discute-se o livre-arbítrio em um Estado que impõe a um cidadão que mate o outro; moralmente, Pouya questiona se pode ser coagido a praticar um ato contrário às suas crenças. O roteiro é inteligente ao mencionar um contraponto: é legítima a crença moral segundo a qual ninguém pode ser forçado a matar outra pessoa, mas também é legítimo pensar que evadir-se de um dever imposto pelo Estado de maneira ilícita é ainda mais grave. O serviço militar obrigatório surge como um vilão para Pouya, mas não um vilão unidimensional, pois é perceptível, na sua conversa com os colegas, que ele é o único profundamente incomodado com a obrigação. O segundo episódio é o que apresenta uma progressão narrativa mais requintada, com uma coerente evolução em forma de suspense que se transforma em ação (do corredor ao banheiro e do banheiro ao que segue) – momento em que a trilha musical exerce relevante função.
“Aniversário”, terceiro capítulo, fica em terceiro lugar também na qualidade. Javad (Mohammad Valizadegan) consegue uma folga do serviço militar, visitando a sua namorada, Nana, em seu aniversário, planejando pedi-la em casamento. Chegando na casa da família de Nana, o clima é de velório. A própria sinopse já permite concluir o desenrolar da trama, tamanha a sua previsibilidade. O elenco não é bom e o texto é superficial. Quando Javad critica as “pessoas políticas”, poderia ir além de uma fala vazia (talvez com a defesa de Nana, por exemplo); quando ele critica a obrigatoriedade do serviço militar, novamente seu discurso é reduzido a trabalhos que não quer praticar (algo deveras simplista considerando as obrigações do exército iraniano); quando Nana segura uma pedra, novamente ocorre uma frustração.
O filme se encerra com “Me beije”, capítulo em que Darya (Baran Rasoulof) visita os tios em sua fazenda durante suas férias da faculdade de medicina. O contraponto entre a medicina e o tema da morte é perspicaz, um paradoxo que, todavia, não é tão bem explorado quanto poderia. Graças a diálogos bem escritos, as discussões entre ela e Bahram (Mohammad Seddighimehr) são provocantes, sobretudo quando ele compara a sua conduta à dela em relação à raposa e quando falam sobre o limite de se fazer somente o que quer. Metaforicamente, a fazenda dos tios é um local onde a vida não floresce (cachorros e galinhas), o que surge como uma ironia em relação ao desfecho.
Rasoulof consegue dar uniformidade visual e, por vezes, sonora, ao seu filme. A cor verde se faz presente como símbolo do serviço militar: a luz do relógio de Heshmat e os botões que ele aperta; os colchões e os cobertores do quarto de Pouya; e a natureza presente com força nos dois últimos capítulos. Entre o terceiro e o quarto, aliás, tons pastéis ganham maior espaço em razão da área desértica e do aparecimento maior de cenários abertos (quando comparados aos dois primeiros episódios). Em menor medida, a cor cinza está nos quatro excertos (o carro de Heshmat, as paredes do quarto de Pouya, a roupa de Javad e Nana ao final e a picape de Bahram), transmitindo a opressão estatal que sufoca as personagens, direta ou indiretamente, mais cedo ou mais tarde. A música “Bella ciao” está nos capítulos pares (no segundo, na forma cantada; no terceiro, instrumental), enquanto os ímpares não têm preocupação musical alguma.
Percebe-se que “Não há mal algum” é irregular em suas porções. Trata-se de defeito que prejudica bastante a produção, principalmente considerando que o melhor capítulo (o segundo) não é bom o suficiente para compensar o pior (o primeiro). Não obstante, é louvável que o filme aborde a pena de morte em perspectiva pouco usual, qual seja, a do executor e das pessoas que com ele se relacionam, não se preocupando com a pessoa condenada, que é trabalhada como uma figura abstrata. A mudança de perspectiva pode ensejar novas reflexões sobre o tema, que pode um dia se tornar um pretérito distante.
* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.