“NA PONTA DOS DEDOS” – A aritmética do amor [47 MICSP]
Ser pretensioso ao fazer um filme não é, necessariamente, um problema. Se o produto entregue é de alta qualidade, a satisfação é garantida, independentemente das pretensões iniciais. Em se tratando de NA PONTA DOS DEDOS, a pretensão existe, porém o resultado não a atinge.
Anna e Ryan estão completamente apaixonados, ou ao menos é isso o que comprova a máquina que fez o teste de seu amor. Para entender melhor como funciona o Instituto do Treinamento no Amor, onde fizeram o teste, Anna começa a trabalhar na empresa. No novo emprego, seu instrutor é Amir, por quem ela começa a nutrir sentimentos que a motivam a questionar o que sente por Ryan.
Sem dúvida, a premissa do diretor e roteirista Christos Nikou (roteiro em coautoria com Stavros Raptis e Sam Steiner) é promissora na medida em que, em princípio, há uma construção sólida de um universo diegético coeso. Em olhar retrospectivo, o objetivo do teste – “erradicar o risco” que amar implica, parafraseando o fundador da empresa, Duncan (Luke Wilson) – faz sentido para a humanidade, que cria instrumentos que facilitam a vida e colocam todos em suas zonas de conforto. Sendo possível eliminar quaisquer riscos, sempre haverá pessoas dispostas a aderir a essa possibilidade (e pessoas ávidas pelo enriquecimento com isso). Nesse sentido, é interessante que o filme, sem dizer a época em que se passa, é claramente anterior ao cibernético século XXI. Mais do que não mostrar pessoas com aparelhos celulares (porque aparentemente não existem), imagem e som revelam um tempo pretérito, notadamente no design de produção (cenários, veículos…), na fotografia (levemente granulada) e na trilha musical (com canções anteriores à década de 1990).
Idealmente, portanto, esse universo diegético é um castelo no qual o teste do amor é de vital importância para as personagens (Ryan, mesmo mais distante da empresa quando comparado a Anna e Amir, afirma que o resultado foi “um alívio” e que não faz sentido “arriscar” fazer novamente). Entretanto, ele se torna um ônus para a solidez do roteiro, que fica cada vez mais questionável. Deixando de lado a pouca verossimilhança da dúvida de Anna (que pode ser aceita com uma benevolente suspensão da descrença), não faz sentido que o resultado negativo seja desanimador da maneira como se apresenta. Se, como é explicado no longa, o teste avalia se estão apaixonados, basta que o casal continue aprimorando a sua relação (inclusive com os exercícios oferecidos pelo Instituto) e o refaça, possivelmente até o resultado dar positivo. Situação diferente seria se fosse um teste de compatibilidade, o que tornaria inúteis os exercícios. Há, portanto, um falso problema, o castelo é feito de cartas.
O inusitado da premissa assume tons de tortura literal e simbólica. No primeiro caso, trata-se do arrancar das unhas, em cenas supostamente chocantes, mas que, por não serem gráficas o suficiente, se embasam mais na expectativa do choque do que no choque efetivo. No segundo, a situação vivida pela protagonista é para ela torturante, ainda que sua insegurança soe machista em se tratando de um romance. Por que apenas ela tem dúvidas sobre seus sentimentos? Por que ela continua indecisa sobre seus atos quando Amir parece censurá-la moralmente (o compromisso com Ryan é dela, mas é ele quem se preocupa)? Isso indica que, em que pese Nikou encarar seu filme como uma alegoria para o vazio das relações humanas, uma crítica contemporânea, na realidade há mais tradicionalismo que ele consegue perceber.
Nota-se que, para parecer diferenciado, o cineasta satiriza os clichês dos romances, como na citação direta a Hugh Grant. Contudo, sua criatividade é diminuta considerando que algumas das melhores cenas do longa são referências de clássicos do romance, como “Ghost – do outro lado da vida” e “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”. Isto é, Nikou pensa que é mais original do que realmente é.
O que está na casca da sua obra é um razoável humor absurdista (o som de chuva, o exercício olfativo, o eletrochoque etc.), quando o público acessa o conteúdo, o que se vê é um ovo oco. Vários elementos são desperdiçados, como a cena terna em que Anna vê o álbum de Amir e a cor vermelha reduzida à sala de testes. Nesse último caso, não faz sentido, em um local pateticamente idealizado para estimular o romance, limitar o vermelho a uma sala pequena onde apenas funcionários entram. Se a intenção é criar uma atmosfera para Amir e Anna, trata-se de um clichê que teoricamente se quer evitar, se é uma sátira à empresa, a limitação àquela sala é equivocada.
No fundo, o triângulo amoroso funciona mais graças ao elenco, pois Jessie Buckley, Jeremy Allen White e Riz Ahmed (o melhor do trio) suprem romances eventualmente insossos. Há cenas boas, como a que Amir admira Anna cantando e a que ela o admira dançando, mas o nível de qualidade não permite cativar o espectador. Os secundários Sally (Amanda Arcuri) e Rob (Christian Meer) são mais encantadores que o trio principal. Nada disso seria um problema se a obra fosse capaz de defender melhor a impossibilidade de dar números ao amor. A superficialidade das relações é quase um consenso hoje, mas subestimada na época do filme e, ainda mais importante, não aparece nele.
* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.