“MULHERES À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS” – Farsa explosiva
Há muitos elementos interessantes em MULHERES À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS, de 1988. A abordagem estilística, o humor doce, o olhar concedido às mulheres, as atuações primorosas, a metalinguagem de fundo… tudo converge para uma farsa explosiva, cujo final é de uma ironia simplesmente deliciosa.
Pepa se desespera após Iván, de quem é amante, terminar o relacionamento com ela. Candela apaixonou-se por um homem sem saber que ele é um terrorista xiita, e agora teme ser procurada pela polícia. Traída por Iván, Lucía pretende se vingar. Marisa está noiva de Carlos, mas fica preocupada quando ele se interessa pela vida do pai, Iván. Todas elas vão se reunir em uma efervescência de resultados imprevisíveis.
Iván (Fernando Guillén) é claramente o elemento comum entre praticamente todas as personagens. Isso não significa, entretanto, que ele é mais importante que as demais; ao revés, ele aparece muito menos e serve meramente como mola propulsora do roteiro para reunir as mulheres. São elas o centro das atenções. Muito diferentes, sua feminilidade é retratada ora como emancipatória, ora como competitiva – ao passo que a masculinidade é expressão da fragilidade dos homens. Enquanto Iván está em fuga, Carlos (Antonio Banderas, distante do perfil sedutor pelo qual se tornou famoso) é submisso a Marisa antes de se encantar perdidamente por outra das mulheres.
Pepa (Carmen Moura, excelente) tem personalidade vulcânica, não tendo paciência com outras mulheres: com Candela (María Barranco, ótima), não se controla (joga o telefone pela janela diante de tantos recados e briga com a amiga mesmo quando esta se encontra em condição psicologicamente vulnerável); com Paulina (Kiti Manver, mais discreta), responde agressivamente a um desaforo. Quando se encontra com Lucía (Julieta Serrano, tão boa quanto a protagonista), porém, a interação entre elas é perigosamente arrebatadora. Ainda que Pepa pareça impulsiva, quiçá violenta, Lucía é incendiária e desequilibrada. Não à toa, o clímax do filme ocorre quando elas se encontram.
A participação de Marisa é menor, o que não elide o brilho de Rossy de Palma, magnética atriz que, assim como as demais (além do próprio Banderas), tornou-se parceira constante na filmografia do maravilhoso Pedro Almodóvar. O cineasta tem em “Mulheres…” um texto afiado, capaz de criar uma figura cuja trajetória estratifica a própria autonomia (Pepa) ao mesmo tempo em que exalta a maternalidade da mesma personagem (os animais em sua casa, o sentimento diante de Carlos etc.). Os espectros femininos são variados (Marisa é antipática a todo momento, o que é ressignificado ao final, após o sonho que tem, quando Pepa enaltece o empoderamento feminino através da sexualidade) e muito mais brilhosos que a singeleza (quando não covardia) masculina.
O humor do longa é igualmente variado. Por vezes, é situacional, como em relação aos aparecimentos do taxista (Guillermo Montesinos) e à cena em que Pepa joga um disco de vinil pela janela. A personalidade das personagens também é fonte de humor (o mencionado taxista é a encarnação do nonsense), além, é claro, dos diálogos. Falas como “que mania você tem de beijar todo mundo”, “desculpe senhor, sou Testemunha de Jeová, sou proibida de mentir” e “senhora, aqui quem faz as perguntas sou eu” criam um tempero melhor que o gaspacho feito por Pepa (e que funciona no roteiro como arma de Chekhov).
O constante vermelho da fotografia (nos figurinos, no balcão e no chão do estúdio, no telefone etc.) fortalece a presença de Pepa, que está sempre vestida dessa cor, salvo quando vai falar com Paulina – cena em que ela pretende largar os próprios problemas (por isso deixa de usar vermelho, cor que representa a sua própria ebulição) para resolver os de sua amiga (o que, é claro, não é bem o que acontece, já que a escassa previsibilidade da narrativa é constantemente frustrada). Utilizando-se de uma técnica primorosa, Almodóvar faz conexões imagéticas entre as personagens – por exemplo, Pepa e Candela assistem ao mesmo noticiário; Pepa e Lucía são filmadas do mesmo ângulo (de frente, em plano médio), porém o cenário em que se encontram é absolutamente distinto (o da primeira é neutro, o de segunda, colorido para traduzir seu ardor).
A metalinguagem é outra ferramenta bem empregada pelo cineasta. De maneira mais discreta, isso ocorre no começo, quando a melancólica canção “Soy infeliz” sai da trilha extradiegética e é incorporada no discurso voice over de Iván, assim como na cena em que Pepa fica à frente do prédio de Lucía, referência (temática e musical) a “Janela indiscreta”. Quando a referência é mais explícita, a intertextualidade assume ares de homenagem à arte – é o caso das cenas em que há dublagem de “Johnny Guitar”, um faroeste cujo texto ingressa no universo diegético e dialoga com a própria trama.
Nos minutos finais, “Mulheres à beira de um ataque de nervos” se torna um filme de ação, embalado por uma música coerente, porém sem perder seu espírito divertido e inusitado. Não se trata de uma comédia hilária, mas uma comédia farsesca inteligente em seu subtexto e engraçada em todo o seu desenvolvimento. Sem dúvida, a suspensão da descrença exigida não é pouca (o bilhete de Pepa é lido em voz alta perto dela justamente quando e onde ela pode ouvir!), mas isso é absolutamente irrelevante. O que importa é que o criativo filme é um deleite como poucos.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.