“MULHER-MARAVILHA 1984” – 2020
Moralista e politicamente conservador, MULHER-MARAVILHA 1984 é um retrocesso em relação ao bom primeiro filme, não se salvando sequer nas cenas de ação. Pouco se pode extrair do longa, que combina com o ano de sua estreia, 2020, um ano marcado por uma pandemia que assolou o mundo e que talvez tenha sido o pior da História do Cinema.
O ano é 1984, e Diana se divide no trabalho do museu e salvando pessoas como Mulher-Maravilha, evitando, porém, chamar a atenção. Quando conhece Barbara Minerva, uma nova colega do museu, simpatiza com seu jeito vulnerável e começa a fazer amizade com ela. As duas descobrem uma perigosa pedra, que é de interesse do apresentador de televisão Maxwell Lord – se ele a tiver em mãos, o mundo inteiro pode sofrer graves consequências.
Patty Jenkins e Geoff Johns não escolheram o ano de 1984 à toa. O que vem à mente, é claro, é a obra clássica de George Orwell. Ainda que não exista um Estado opressor no filme como no livro, o desenrolar da trama recai em ímpetos belicistas e imperialistas bastante claros. Na terminologia do livro de Orwell, Diana é uma impessoa (já que registros da sua existência enquanto Mulher-Maravilha são praticamente inexistentes, como se sabe a partir de “Batman vs. Superman”) e a população quer que suas crimideias (pensamentos ilícitos) se tornem realidade, algo que a dreamstone pode concretizar. A própria Diana tem um desejo contrário à ordem natural (Steve retornar à vida), o que se torna mais grave quando seu comportamento é paradoxal (ao olhar apenas para Steve, como ela pode esquecer por completo a vida do homem sem nome? O impasse moral não alcança essa reflexão).
Ainda no olhar político, em 1984 o republicano Ronald Reagan foi reeleito presidente dos EUA. No filme, o presidente dos EUA não é figura central, mas é bastante simbólico seu desejo por armamento, ao passo que o mundo árabe é enxergado com um certo desprezo (eles têm riquezas e é isso que interessa, porém não são confiáveis). O vilão Maxwell Lord, interpretado por Pedro Pascal como uma caricatura de Donald Trump, é reflexo dos variados excessos (nesse caso, overacting) do longa. Não seriam necessárias suas demoradas e cansativas duas horas e meia (os primeiros noventa minutos são narrativamente nulos), o que é estranho em se tratando de um filme de ação. Existe uma cena boa na Casa Branca, porém a maioria é decepcionante (a do raio, presente no trailer, reduz-se a um plano de, no máximo, dois segundos). O uso de armas é superior ao original e o prólogo é interessante, mas o saldo é muito aquém do desejável. Jenkins não tem a mesma habilidade de promover cenas empolgantes como no primeiro filme; quando Diana aparece com a armadura dourada (momento que deveria ser o ápice da adrenalina), até mesmo a música-tema da Mulher-Maravilha é cortado, indicativo de que a ação é falha – outro exemplo é o abuso de CGI em cenas-chave (um trabalho escancaradamente ruim, basta ver que a estética é noturna, tentando esconder as falhas).
Assim como a diretora não alcança o nível do longa precedente, a química entre Gal Gadot e Chris Pine não funciona como antes. Gadot é carismática, mas ainda não é uma atriz (talvez uma modelo que participa de filmes, ao menos por enquanto); Pine já tem uma carreira consolidada, mas aqui cedeu seu mediano talento para Pascal (única explicação para os exageros de Max). O casal principal é insosso; o vilão, enérgico em demasia (causa estranheza, inclusive, o fôlego empolgado mesmo quando lhe faltam forças). Salva-se apenas Kristen Wiig, única que faz um bom trabalho de atuação e que tem um papel congruente. A caracterização da atriz é ótima nas transições progressivas (maquiagem e penteado em especial), o que ela reforça na atuação, porém o aproveitamento da personagem é pífio. Melhor teria sido deixá-la como única vilã.
Visualmente, a contraposição do figurino entre Barbara e Diana é interessante (as cores e o próprio vestuário são opostos) e a produção começa com cores vivas e referências culturais à década de 1980. Entretanto, isso se reduz à primeira hora de filme; a partir de então, o esmero estético se esvai. Em sua maioria, as cenas não conseguem ser memoráveis (como a dos fogos de artifício) e, principalmente, são extremamente desnecessárias. A heroína não deve ser feita de piscadelas e um amor interrompido. Mesmo quando a película envereda por assuntos abstratos, como heroísmo e verdade, o viés adotado acaba sendo moralista e, o que é pior, hipócrita. É de se lamentar que Diana sugira querer uma recompensa por seu empenho como Mulher-Maravilha (quando diz que “nunca quis nada além de Steve de volta”). Se a ideia é que ela tenha um lado humano ao errar, não apenas a lição é óbvia para alguém como ela como o processo de aprendizagem é bastante lento.Pode ser que “Mulher-Maravilha 1984” seja funcional como filme do gênero de super-heróis. Existem referências oportunas às HQs em geral (o vento resultante do poder da pedra) e às da heroína (o uso do laço como arma versátil), contudo falta-lhe muita coisa para ser, pelo menos, medíocre. A trama não é amarrada por discursos tradicionalistas sobre verdade e sacrifício, mas enrolada e pintada em verniz ultrapassado. Uma das últimas estreias cinematográficas de 2020 que combina com 2020.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.