“MULAN” (2020) – Revisita ao fantástico
Desde que a Disney decidiu revisitar suas clássicas animações para criar novas versões, as discussões sobre a pertinência dessa prática se avolumaram. Foi assim com “A bela e a fera”, “O rei leão” e “Aladdin”, por exemplo, sempre despertando comentários nem tão elogiosos por comparação com o original. Logo, era inevitável que MULAN não passasse pelo mesmo processo ao ser disponibilizada na Disney+. Embora o trabalho comparativo atraia muitos, o live action precisa ser analisado como outra apropriação da já conhecida história, aprofundando o que antes estava implícito.
A premissa não se diferencia do projeto de 1998: Hua Mulan se disfarça de homem para assumir o lugar de seu pai no Exército imperial após a convocação do imperador da China. Apesar de a mentalidade da sociedade atribuir às mulheres o papel de esposas grantidoras da honra da família, ela cria para si a identidade de Hua Jun para combater os invasores que atacam seu país e para se provar uma grande guerreira.
O principal conflito narrativo também se mantém inalterado ao impor papéis de gênero, que são contestados pela protagonista. Há um código de honra que atormenta todos com o risco de ostracismo e se compõe tanto de uma dimensão social quanto de elementos místicos: por um lado, os homens devem ser soldados enquanto as mulheres devem ser esposas obedientes, além de ambos precisarem se entregar à família, ao imperador e à nação; por outro, os personagens acreditam no poder dos ancestrais de inspirar e proteger suas vidas, simbolizado pela fênix que acompanha os eventos da trama dos céus. Dessa forma, a produção reforça essa duplicidade ao partir do cenário terreno mais concreto da sociedade para penetrar ainda mais intensamente no fantástico das crenças e tradições.
Hua Mulan desfia precocemente as regras de sua sociedade. Nessa versão, Niki Caro comanda uma narrativa que propõe mudanças em relação à animação, mas não deixa de pontuar momentos familiares sobre os embates que enfrenta (as brigas com os familiares, a reunião com a casamenteira, os desafios no exército e a reviravolta com a descoberta de sua identidade). Em outras passagens, a diretora define aspectos singulares, como a infância intrépida da jovem, a intensificação de seu arco dramático de busca pelo seu lugar no mundo e uma abordagem menos cômica para a personagem (o que faz com que Yifei Liu não possa criar alguém tão carismático, mas uma pessoa decidida, corajosa e dramaticamente complexa). Mesmo o tom fantasioso faz parte dela, pois sua jornada também envolve aprimorar os raros poderes especiais de luta que possui.
Essa duplicidade não está presente apenas na protagonista. O exército inimigo dos rourans tem uma mulher em suas fileiras chamada de bruxa, em virtude das suas habilidades de transformação corporal; além disso, Xianniang também sofre as interdições do machismo que a deixou em um lugar segregado, sendo mal vista por não se encaixar nos rígidos papéis sociais (mesmo quando busca seus objetivos, acaba se submetendo às ordens de um homem). Entretanto, a personagem poderia ser mais desenvolvida para além da aura de mistério dada pela atuação de Li Gong e pela composição visual da figura – afinal, os paralelos entre ela e Mulan são enfraquecidos por seu pouco tempo de tela e pelo excesso de exposição em sua apresentação, deixando a impressão de que o roteiro não permite que seja livre para se expressar.
Niki Caro reconhece que sua perspectiva artística da história não poderia se limitar somente ao texto. A ideia de aprofundar a faceta fantasiosa faz com que a cineasta possa investir com cuidado na abordagem visual, de modo a deixar os olhos dos espectadores maravilhados com os cenários imponentes e as diversas cores vibrantes do design de produção e da fotografia. As sequências de abertura são expressivas para indicar o desprendimento de qualquer naturalismo e realçar a estética fantástica de uma trama marcada pelo místico – portanto, é coerente acompanhar o mergulho da câmera pela vila onde Mulan mora e pelas colinas do entorno. Ainda assim, a narrativa perde momentaneamente o equilíbrio no uso das cores quando algumas cenas criam situações forçadas para tornar a tela mais colorida.
O mesmo princípio fantástico reveste os efeitos causados pela encenação das cenas de ação. Tais momentos assumem um estilo cartunesco que também dispensa noções de naturalismo atribuídas, por exemplo, a filmes como “Atômica” e “John Wick”, pois suas características se assemelham a títulos como “O clã das adagas voadoras”. Sendo assim, é possível sentir traços de um cinema não hollywoodiano na movimentação incomum dos personagens (especialmente Mulan, que parece voar a cada golpe) e na integração das lutas aos cenários (algo visto no confronto em um corredor estreito). Niki Caro decupa as sequências de maneira fluida, através do slow motion em instantes específicos e da quebra do eixo da câmera em planos que alternam os ângulos e as perspectivas das ações.
Nesse sentido, algumas diferenças em comparação com o original fazem falta não por exigências de fidelidade, mas porque seriam elementos enriquecedores para a abordagem. O live action de “Mulan” reformula os personagens coadjuvantes, antes animais ou figuras fantasiosas, para serem soldados com o objetivo de interagir com a protagonista – essas alterações retiram o tom cômico e não entregam personagens carismáticos com os quais se importar ou se divertir, aspectos que se estivessem presentes contribuíram para a proposta. A despeito disso, o filme trabalha as lutas feministas da protagonista com uma boa dose de entretenimento de uma aventura fantástica.
Um resultado de todos os filmes que já viu.