“MONSTER” – Diálogo sensível com Rashomon [25 F.Rio]
“Pais e filhos“, “Assunto de família” e “Broker – Uma nova chance” tratam dos conceitos plurais de família, formados por relações inusitadas e encontros imprevisíveis. O mesmo tema foi desenvolvido, respectivamente, através de um melodrama, de uma abordagem naturalista e da multiplicação de subtramas por Hirokazu Kore-eda. Em seu mais recente trabalho, o cineasta discute o peso da mentira e da culpa em relações sociais variadas que contemplam o universo familiar, educacional e as amizades juvenis. Para isso, MONSTER molda sua narrativa ao estilo “Rashomon” de diferentes perspectivas.
Saori Mugino é uma mãe que sente eu há algo errado com seu filho Minato Mugino quando começa a se comportar de forma estranha. Ao descobrir que o professor Michitoshi Hori pode ser o responsável, ela vai até a escola e exige saber o que está acontecendo. Enquanto o caso se desenrola pelos olhos da mãe, do professor e do garoto, as explicações sobre as mudanças comportamentais de Minato ganham corpo e envolvem também o colega de classe Eri.
Hirokazu Kore-eda toma como referência “Rashomon” para desenvolver uma narrativa que fragmenta o tempo e os pontos de vista. Um conjunto de acontecimentos é narrado e vivenciado pelos olhares diversos dos principais personagens envolvidos, conduzindo o espectador pelas mesmas cenas por ângulos distintos e novas sensações. No entanto, o uso da fragmentação narrativa não é mero capricho nem promove o mesmo efeito dramático. Se o clássico de AKira Kurosawa investigou a possibilidade de se reconstruir uma verdade completa, definitiva e objetiva para o passado a partir da tentativa de resolução de um crime, “Monster” está interessado pela busca do que as pessoas têm de mais doce mesmo quando a percepção mais apressada aponta apenas defeitos e atitudes condenáveis. Em seus projetos anteriores, todos os personagens centrais fogem de um maniqueísmo desumanizante por pertencerem a uma “zona cinzenta” mais complexa e aqui não seria diferente.
Os comentários sobre um ser humano ter cabeça de porco, os machucados no corpo, o corte improvisado de cabelo, a perda de um par de tênis, o desaparecimento à noite e as falas desconexas sobre ser um monstro e não estar à altura do pai falecido. Esses são os eventos que norteiam o mistério em torno do comportamento de Minato e levam Saori a tentar ajudar o filho. Então, três linhas narrativas são formadas sob as perspectivas da mãe, de Michitoshi e do menino. Na primeira, percebe-se o amor materno dedicado que transborda pela atuação de Sakura Ando, lidando com as dificuldades de não obter respostas do filho nem apoio da escola. Na segunda, há uma reconfiguração para o debate acerca de bullying no ambiente escolar e das injustiças cometidas após o descontrole gerado por uma sequência de mentiras. E na terceira, outras transformações ocorrem para dar lugar aos obstáculos enfrentados por uma amizade delicada em meio ao preconceito, à violência e ao medo da não aceitação social.
A divisão da narrativa nos três segmentos, claramente diferenciados pela exibição de um incêndio, repensa a dimensão emocional, principalmente de Michitoshi e de Minato. O princípio geral que governa a discussão proposta é o que define um monstro, referência ao título da obra e elemento recorrente em vários momentos. O jovem protagonista se preocupa com a humanidade de alguém que supostamente teria cabeça de porco, mãe e filho conversam sobre renascer como algum animal, uma brincadeira infantil é feita para descobrir o animal (real ou não) escolhido pelo colega e certas atitudes (humilhar e agredir outra pessoa) são abordadas como uma monstruosidade. Refletir sobre o que é humano e o que é monstruoso perpassa o trabalho de Eita Nagayama, dando ao professor a chance de mostrar que as primeiras impressões podem ser enganosas. De forma similar, o debate temático mais amplo evidencia que a preocupação pessoal se seria um monstro já revela humanidade e que as dúvidas, medos, falhas e fragilidades não fazem da pessoa algo inumano.
Enquanto a natureza de cada personagem se torna cada vez mais complexa e os sentidos da palavra monstro são relativizadas, alguns aspectos dramáticos e visuais são ressignificados com o passar do tempo. E não se trata de voltar a eles para encontrar a verdade do que realmente aconteceu, mas discernir traços emocionais sensíveis que humanizam quem está envolvido na história. Pode ser a demonstração de um gesto de cuidado com o outro, representar um ato de intolerância ou expor a fragilidade de que não sabe o que fazer em uma situação conflituosa. À medida que as três perspectivas se sucedem, ter cabeça de porco deixa de ser uma imaginação curiosa para se transformar em uma forma de violência de quem deveria acolher; desaparecer à noite não é mais um ato rebelde, mas um vínculo incomum com um amigo; perder um par de tênis não é fruto de roubo ou desleixo, já que traduz a empatia por quem perdeu seus pertences; e cortar o próprio cabelo não significa apenas um ato irracional, pois simboliza o erro impulsivo de quem apoia a opressão por medo.
Na terceira parte, a utilização do mesmo recurso narrativo de “Rashomon” para fins próprios se torna evidente. A exposição e o desenvolvimento do lado mais afetuoso do ser humano preenche a relação entre Minato e Eri, dois meninos que se aproximam apesar das barreiras que encontram para deixar a amizade pública. Outra virtude de Kore-eda é explorar o universo infantil e tornar as atuações infantis espontâneas, quase como se fossem duas crianças vivendo as próprias vidas sem qualquer encenação ficcional. Beneficiados pelo estilo do cineasta, Soya Kurokawa e Hinata Hiiragi fazem seus personagens desfrutarem genuinamente o relacionamento que se cria entre eles e também sofrerem com os impedimentos alheios aos dois para uma amizade sem ressalvas, preocupações ou julgamentos. Sendo assim, a dinâmica entre os atores e a condução do realizador extraem momentos bonitos e graciosos do que é simples e corriqueiro, como a conversão de um trem abandonado em um refúgio lúdico e a caminhada de volta para casa em oportunidades de estreitamento da convivência.
A cada minuto que se passa, “Monster” se distancia de qualquer noção de monstruosidade que poderia haver para abraçar uma humanidade tocante que valoriza a relação entre dois meninos. Inicialmente, os sentimentos e as situações são tensas e desagradáveis, surgidas da culpa resultante por mentiras contadas na tentativa de lidar com um cenário adverso. Em seguida, a adoção de novas perspectivas do olhar permite aos personagens apresentarem o que têm de mais agradável, envolvente e amável, estimulando o público a sentir empatia por eles. Dentro disso, a questão do renascimento, já abordada anteriormente, ressurge na conclusão como uma metáfora que pode ter múltiplos sentidos. É possível pensar em desfechos mais ou menos felizes, mais ou menos literais, porém, de qualquer forma, todos eles renascem. E não como monstros cruéis. Renascem como seres mais humanos.
*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.