“MILLENNIUM: A GAROTA NA TEIA DE ARANHA” – Vilipêndio de legado
A série “Millennium” foi idealizada pelo jornalista sueco Stieg Larsson como uma trilogia: “os homens que não amavam as mulheres”, “a menina que brincava com fogo” e “a rainha do castelo de ar”. Na Suécia, os três ganharam versões cinematográficas muito boas. Em Hollywood, apenas o primeiro, em uma versão apenas razoável. Posteriormente à morte de Larsson, David Lagercrantz assumiu a franquia literária, com “a garota na teia de aranha” e “o homem que perseguia a sua sombra”. Com MILLENNIUM: A GAROTA NA TEIA DE ARANHA, o legado de Larsson é vilipendiado.
Na indecisão entre reboot e continuação, o filme tem em Lisbeth Salander uma justiceira que ataca homens agressores de mulheres, fama adquirida graças às matérias escritas por Mikael Blomkvist, jornalista da revista Millennium. Um dia, Frans Balder a contrata para extrair do governo dos EUA um programa de computador criado por ele, o Firefall, que permite controle de armas nucleares ao seu usuário. O que eles não sabem é que o programa é de interesse também do governo sueco e de uma associação criminosa conhecida como “Os Aranhas”.
O longa é dirigido por Fede Alvarez, responsável pelo ótimo “O homem nas trevas”. E o problema não está na direção: a despeito da singelíssima (tão modesta que poderia ser dispensada, sem prejuízo) animação dos créditos, o cineasta faz um trabalho virtuoso, como se denota do plano-sequência envolvendo um agente da NSA (National Security Agency, ou, em tradução livre, Agência de Segurança Nacional) e, principalmente, uma sequência em que a protagonista sai tonta de um local – há uma inteligente manipulação do foco e uso de giros na câmera, transmitindo com eficiência a sensação de vertigem. A montagem também é boa, como na sequência em que o filme subverte o efeito Kuleshov de maneira semelhante ao que é feito no clássico “O silêncio dos inocentes” (ainda que de maneira muito menos surpreendente e envolvente, sobretudo porque não é mais novidade).
Quando oportuno, Alvarez usa bons recursos imagéticos. Por exemplo, o plano-detalhe da aranha dentro da peça de xadrez no prólogo tem um significado bastante plural, pois a associação entre a aranha e a peça é retomada mais à frente – de certo modo, a situação se inverte. Pedro Luque, diretor de fotografia, é um dos maiores destaques da película ao filmar uma Estocolmo extremamente cinzenta e fria, muitas vezes enfatizando os edifícios escuros e a natureza gélida (as árvores, inclusive, estão sem folhas e sem vida em meio à neve).
O grande defeito da produção está com o trio de roteiristas do qual Alvarez é integrante (juntamente com Steven Knight e Jay Basu): o script é pavoroso. É verdade que a estrutura geral é mantida, com referências sutis aos precedentes (Mikhael conversando com Lisbeth sobre encontrar fantasmas e o fogo presente em duas cenas) e aproveitamento de personagens recorrentes (como Plague, o amigo hacker). Porém, dessa vez, o que se tem é uma trama extremamente clichê, cujo fio condutor é semelhante a “Encontro explosivo” (o que não é bom sinal). O que é mais grave é que a violência (no sentido mais amplo) contra a mulher é colocada em segundo plano, algo que era prioridade para Larsson. Ainda, o subtexto político não é convincente e a abordagem das personagens é frágil, quando não incoerente com a concepção original.
Claire Foy já é uma atriz de renome graças ao seu trabalho na série “The Crown”. Seu biotipo é adequado para o papel de Lisbeth, bastando adicionar o visual gótico (maquiagem, penteado e figurino). Contudo, sua expressão de medo e, por vezes, de vulnerabilidade, não se coaduna com uma personagem cuja marca é a insensibilidade. De nada adianta colocar adereços de uma personalidade forte se, atrás da máscara, Lisbeth se mostra delicada (e essa nunca foi a proposta da personagem em nenhum dos filmes, justamente porque não guarda coerência com uma jovem sofrida, desconfiada e retraída).
Pior é a participação de Sverrir Gudnason, uma versão jovial e (ainda mais) galante (que a de Daniel Craig) de Mikael, cuja inutilidade narrativa é deplorável. Sua presença é justificada para manter a estrutura básica da série “Millennium” e para explicar alguns detalhes do plot – assumindo serem muito complexos para o público deduzir sozinho -, porém, em termos narrativos, ele é deveras dispensável. O arco dramático de Mikael representa uma descrença em si mesmo, algo sugerido por outra personagem (Erika, na aparição efêmera de Vicky Krieps), mas que jamais recebe aprofundamento.
Mesmo tendo em conta as virtudes estéticas do filme (salientando que, do ponto de vista sonoro, nem a óbvia trilha musical se salva), ele não se sustenta com o roteiro que tem. As situações de conflito criadas pelo próprio texto recebem soluções fáceis, como se portas seguras, drogas estimulantes e pontes levadiças fossem sempre fáceis de encontrar e mesmo utilizar – e é nesses momentos que o roteiro atola no descalabro em que ele mesmo se insere. E o legado de Stieg Larsson é vilipendiado.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.