“MILAGRE NA RUA 34” (1947) – O encantador “espírito natalino”
Poucos filmes conseguem retratar tão bem a “alma” do Natal quanto MILAGRE NA RUA 34 (que, no Brasil, originalmente, chegou com o nome “De ilusão também se vive”), de 1947 (não confundir com o remake de 1994). De acordo com o Papai Noel do filme, o Natal não é apenas uma data, mas um “estado de espírito”. O longa propõe um interessante debate: os ensinamentos que as crianças recebem a esse respeito constituem cativação ou alienação? Acreditar faz bem?
Doris Walker cria a sua filha, Susan, sem permitir que ela acredite em contos de fadas ou crenças populares. A vida de ambas pode mudar quando conhecem Kris Kringle, que alega não apenas que o Papai Noel existe, mas que ele é essa figura natalina. Mesmo descrentes, elas se afeiçoam pelo idoso de barba branca, que, todavia, arranja desafetos que exigem a ajuda de Fred Gailey, um advogado apaixonado por Doris.
Típico filme natalino – impulsionado na trilha por clássicos como “Santa Claus is coming to town” e “Jingle bells” (em versões instrumentais) -, o roteiro elaborado pelo diretor George Seaton a partir da história de Valentine Davies segue uma divisão clássica de três atos bem delineados. No primeiro, Kris se apresenta à plateia como um idoso gentil e bondoso que adota o Natal como missão de vida, o que implica suavizar a rigidez de Doris e Susan. Edmund Gwenn é incrível no papel, a começar pela sua caracterização convincente, fundamental para a trama, mas também pelo verdadeiro carisma que transmite a todo momento, esbanjando a simpatia que popularmente se esperaria do verdadeiro Papai Noel. São com ele também as melhores cenas de humor, como quando corrige as renas na maquete da loja e quando imita o funcionamento do exame a que será submetido.
Também nesse primeiro ato são apresentadas Susan e Doris. A menina é interpretada por ninguém menos que Natalie Wood, posteriormente consagrada em outros longas, em especial “Amor, sublime amor” (1961), demonstrando que seu talento já existia desde a infância. Susan tem o perfil de “criança adulta”, aquele tipo de infante que não acredita em nada metafísico e que debocha do surreal, principalmente quando Fred tenta introduzi-la nesse mundo (como na sua fala cínica “ah, um desses” ao se referir a conto de fadas e no hilário olhar de desprezo para a simples hipótese de conhecer um Papai Noel). Não à toa, Kris tem mais habilidade que Fred nessa área, fazendo com que ela se empolgue com, literalmente, macaquices, recordando à própria criança que ela é uma criança. É Fred quem percebe que, na realidade, Susan teve parte de sua infância retirada graças à frustração de sua mãe. Doris é a única mulher entre os executivos da empresa e seu figurino é constantemente formal (usando blazers, por exemplo), o que traduz imageticamente o seu perfil. Maureen O’Hara não faz dela uma mulher fria, mas ela tem uma visão de mundo dura em razão de um trauma pessoal que a faz concluir que o sonho é realizado apenas na ficção. Ou seja, Doris projeta seus desapontamentos na filha. A primeira missão de Kris é mostrar que sonhos podem ser realizados, mas que é preciso acreditar nisso.
No segundo ato, surge a segunda missão: cativar e consolidar o “espírito natalino” dentro de um sistema capitalista. É simbólica a cena em que Kris rasga e joga no chão as orientações de seu patrão, assim como a fala de Alfred (Alvin Greenman) indicando que o chão que limpa está empoeirado há anos, como se há muito tempo os valores imateriais que o Natal deveria estimular estivessem esquecidos. Sem perder a alma familiar inerente à comédia e à fantasia, o longa ganha aqui uma camada a mais, elaborando uma crítica à comercialização do Natal em si mesmo, cujo resultado é a ganância do empresariado e a simplificação dos desejos infantis em presentes comprados em loja e embalados em caixas. A solução encontrada é deveras inteligente e irônica, assim como a do ato final, quando o filme se transforma em um instigante e perspicaz drama de tribunal repleto de surpresas em termos narrativos. Há um subtexto sobre saúde mental, questionando a patologização de tudo, que, na verdade, reforça a ideia governante relativa à fé.
O que há de mais central em “Milagre na Rua 34” é a defesa da imperatividade da fé. Não se trata da fé em divindades e nem propriamente no metafísico, mas na satisfação do que se pretende. No olhar do Papai Noel, ensinar o acreditar às crianças não é aliená-las, mas orientá-las a uma vida mais feliz, quiçá mais plena. É também por isso que John Payne interpreta Fred – que compartilha do mesmo pensamento – com alegria e leveza, pois ele acredita, por exemplo, que conseguirá “amolecer o coração” de Doris. O “espírito natalino” representa a alegria das crianças em receber um presente (e o modo como garantir isso), mas também, de maneira mais ampla, a realização daquilo que se deseja, sendo criança ou adulto. Raros filmes conseguem cativar isso com tamanho encanto.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.