“MICKEY 17” – Uma decepção
O uso de alegorias criativas para tratar de preocupações sociais é provavelmente a marca principal da filmografia de Bong Joon Ho, que varia no tom: uma sátira naturalista (“Parasita”), uma aventura fantástica (“Okja”), um thriller de sci-fi (“Expresso do amanhã”) e um horror dramático (“O hospedeiro”), para citar alguns dos mais célebres. MICKEY 17 é uma sátira de ficção científica que, interpretada com distanciamento, é a soma de tudo o que o cineasta tem feito, sem grandes novidades.
Em um futuro distópico, Mickey corre o risco de perder a sua (infeliz) vida em razão de uma dívida. Desesperado, ele se voluntaria para uma expedição espacial voltada à colonização de um planeta. Porém, sua pressa faz com que assuma o trabalho de “descartável”, alguém destinado a morrer sucessivas vezes – ganhando um novo e idêntico corpo, com as velhas memórias – para fins de experimentação e conhecimento científico.

Do ponto de vista estritamente técnico, a única ressalva importante à direção de Bong Joon Ho se refere ao ritmo desnecessariamente lento conferido ao filme, que poderia ser mais curto. No mais, seu trabalho não merece maiores reparos. No aspecto sonoro, a trilha musical é coerente com as variações da narrativa em seus diferentes momentos (como no tango na cena em que Nasha começa a realizar seu fetiche na cama ou na música épica do clímax); além disso, para fins cômicos, os ruídos criados para os rastejantes funcionam bem. Os efeitos visuais, por sua vez, ganham realce com os mencionados rastejantes, criaturas que parecem muito reais e cuja concepção é uma ironia em si mesma. Isto é, apesar da sua aparência nojenta, sua conduta é muito mais nobre do que a (da maioria) dos humanos.
Ainda na análise imagética, o design de produção aposta fortemente em tons cinzentos (não raras vezes, mesclados com outras matizes), refletindo a realidade triste vivida pelo protagonista (que, a rigor, não é Mickey, mas o décimo sétimo Mickey). O cinza está nas paredes, nas roupas de cama e nos uniformes, por exemplo, fazendo com que as poucas cores vivas chamem a atenção (o vapor escarlate do túnel de descarte, o paletó marsala de Kenneth, a camisa salmão de Ylfa…).
Quanto às atuações, o elenco tem bons nomes, como Toni Collette, Naomi Ackie e Steven Yeun, mas quem se destaca é Mark Ruffalo e, mais ainda, Robert Pattinson. Os três primeiros têm bom desempenho, mas Ruffalo consegue, com seu overacting, atribuir ao longa uma atmosfera caricata que é inerente à sua personagem. Kenneth é a caricatura – cabe lembrar que se trata de uma sátira – do político manipulado (ora por sua esposa, ora por um conselheiro) que se apropria de um discurso religioso hipócrita para fundamentar suas inescrupulosas intenções. Trata-se de uma persona cujo paralelo com a realidade não é difícil e que, tanto no filme quanto na vida real, angaria seguidores fanáticos. No caso de Pattinson, certamente o antagonismo entre duas versões de Mickey facilita o seu trabalho, contudo o ator atribui a cada personagem uma aura muito particular traduzida em minúcias, como o tom de voz e a medida da abertura das pálpebras.
Baseado no livro de Edward Ashton, o roteiro de Joon Ho tem uma estrutura refinada, com bom uso de narração voice over no início e no final (parecendo um conto) e de prólogo in media res (um importante foreshadowing que, ainda, estimula a curiosidade do espectador). Seu trabalho de construção de mundo, ainda, é deveras sólido. Deslizes como a enorme suspensão da descrença (o tradutor, por exemplo) e o didatismo exacerbado podem ser relativizados. O que é central no longa é uma eficaz alegoria que não se restringe a um tema.
O filme começa abordando a situação precária dos imigrantes, cujo desespero os motiva a sair para ter uma vida melhor, sendo, porém, tratados como descartáveis e submetidos a condições desumanas (mais uma vez, não poderia ser mais próximo do real). À medida que a narrativa avança, o texto trata do colonialismo e, a partir disso, a sátira faz troça de práticas políticas, sem ter o receio de retratar intentos de eugenia (como na conversa com Kai), o instinto humano predatório (no trato concedido aos nativos do planeta), a relativização de valores éticos em favor de ambições nada éticas (a impressão de humanos foi inicialmente questionada).
As metáforas são perspicazes, todavia, nada originais. Existem pontos de contato entre “Mickey 17” e as obras anteriores de Joon Ho, como a crítica à gastronomia exótica (presente em “Okja”) e ao estabelecimento de camadas sociais extremamente díspares (presente em “Parasita”). O novo filme é inteligente e engraçado, mas não é inovador, sequer na carreira do cineasta (que certamente pode fazer melhor). É, em síntese, uma decepção. De modo mais preciso (e paradoxal), uma ótima decepção.


Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.