“MEMÓRIA SUFOCADA” – Documentário sob a forma de pesquisa
Os filmes de temática histórica representam o passado sob a luz de questões norteadoras do presente. As pesquisas históricas e sociológicas sobre tempos pretéritos seguem o mesmo movimento ao partir das perspectivas do pesquisador em seu tempo histórico. As duas operações podem ser verificadas em MEMÓRIA SUFOCADA, um documento contemporâneo sobre o período de autoritarismo, pós-verdade e abusos da tecnologia nos últimos anos no Brasil. No documentário, a linguagem e os acontecimentos de ontem e de hoje se fundem para tratar a memória sobre a ditadura civil-militar que tem sido criada no país atualmente.
Gabriel Di Giacomo escreveu, dirigiu e montou o documentário que nasce da inquietação com o resgate de referências e personagens da ditadura. No contexto do golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff, o então deputado federal Jair Bolsonaro exaltou o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador na década de 1970, como herói. Por que há afirmações tão conflitantes sobre o personagem? O esforço para responder a questão leva a buscas pela internet, de modo que a reconstrução do passado alcança o presente.
A narrativa toma como ponto de partida as declarações de Ustra em uma audiência pública da Comissão Nacional da Verdade para investigar o que foi o regime autoritário e quais foram suas implicações para a sociedade brasileira. O documentarista chega a contextualizar o golpe de 1964 e a repressão pelo DOI-CODI através de letreiros na abertura, mas a proposta se afasta dos moldes convencionais de documentário. A produção busca informações, imagens e depoimentos em plataformas na internet, utilizando, por exemplo, o Google, YouTube, Twitter, Instagram, Spotify e sites de agências públicas ou órgãos governamentais do Brasil e dos EUA. Sendo assim, a metodologia inclui a reunião de materiais disponíveis a qualquer pessoa que pesquise sobre a ditadura em meios eletrônicos. Levando em conta essas plataformas, abordam-se o contexto de deposição de João Goulart, o apoio dos EUA ao golpe, as violações de direitos humanos, a Lei da Anistia, os desdobramentos do regime no presente e as formas de enfrentamento do passado.
Construir o filme em torno de pesquisas na internet pode impulsionar reflexões pertinentes a respeito da atualidade: as influências crescentes do virtual sobre a realidade, a disponibilidade de fontes históricas acessíveis sobre temas socialmente relevantes e as disputas políticas em uma arena virtual marcada também por discursos negacionistas à ciência. Esse último ponto alerta para os perigos que podem haver no uso da internet pela extrema direita, como a propagação de produtos com a inscrição “Ustra vive”, de vídeos falseadores da história e de comentários saudosistas da ditadura em postagens variadas. Em contrapartida, Gabriel Di Giacomo consegue explorar muito bem o caráter hipertextual do mundo digital. Diante dos olhos do público, pesquisas são feitas acessando páginas para descobrir quem é determinada pessoa citada anteriormente e o que significa certo evento mencionado por alguém, enquanto o documentarista parece receber mensagens e vídeos relacionados no Whatsapp.
Então, a própria linguagem digital é incorporada às escolhas formais e ao recorte temático da obra. O princípio norteador da narrativa é examinar os ecos de um passado autoritário em um presente radicalizado durante o governo Bolsonaro, o que logo fica evidente na construção documental. Quando o diretor consulta no Google sobre os empresários que apoiaram a ditadura, a Comissão da Verdade e um militante torturado cujo primeiro nome era Alexandre, o site sugere como resultados, respectivamente, os empresários que apoiaram Bolsonaro ou Lula, o coronavírus e o ministro Alexandre de Moraes. Além de mostrar as pesquisas mais frequentes, o recurso também une temporalidades distintas. Efeito similar ocorre nos momentos em que aspectos do passado são encenados segundo a linguagem de ferramentas contemporâneas, como arquivos sonoros de época apresentados como áudios de Whatsapp e votações sobre a revisão da Lei da Anistia no STF como enquete no Instagram.
Passado e presente continuam interagindo graças ao trabalho criativo da montagem. Como a narrativa se estrutura como uma colagem de diferentes materiais reunidos da internet, Gabriel Di Giacomo precisa definir um caminho central que dê coerência temática e cronológica à sequência dos elementos. De início, o realizador alterna entre cenas aparentemente díspares por conta da diferença temporal, mas que se aproximam pela repetição de alguns traços. É por esse pressuposto que o documentário pode transitar por imagens da Marcha da Família com Deus pela Liberdade nas ruas de São Paulo em 1964 e registros de manifestações a favor de intervenção militar em 2016. Os dois episódios mostram como a paranoia anticomunista e a visão das Forças Armadas como instituição salvadora persistem no imaginário conservador de parte da população brasileira. Mais adiante, a sintonia entre passado e presente parece ainda mais precisa quando a montagem integra as imagens da votação do impeachment de Dilma Rousseff no Congresso com o áudio da sessão que decretou a vacância da presidência em 1964.
Mesmo que a maior parte do filme seja produzido com materiais da internet, existem outras sequências que seguem outra dinâmica de encenação. Em certos instantes, o documentário mostra as dependências de um prédio utilizado pelo DOI-CODI em São Paulo após ter sido desativado com uma filmagem que remete a uma obra de ficção. A trilha sonora angustiante de suspense e a movimentação da câmera pelo espaço vazio, abandonado e escuro criam uma atmosfera opressiva que sintetiza a repressão estatal abordada nos primeiros minutos. Quando o ambiente é novamente visitado pela câmera, a construção formal se intensifica e leva os relatos sobre as torturas sofridas pelos sobreviventes para uma dimensão ainda mais expressiva. O diálogo com uma representação ficcional ainda acontece quando cenas de violência policial contemporânea são projetas nas paredes da antiga sede do DOI-CODI, de maneira a indicar que torturas e execuções pelo Estado apenas reassumiram uma lógica classista mais visível.
Em se tratando de uma produção que depende majoritariamente do encadeamento de materiais de outras fontes, o antigo mito do registro imparcial e objetivo da realidade pelo documentário poderia passar pela mente de alguns espectadores. Porém, a imparcialidade e a objetividade não se fazem presentes em nenhuma atividade humana, nem mesmo em um filme que, teoricamente, não traria a voz de seu realizador de modo explícito. A assinatura autoral de Gabriel Di Giacomo está na forma como monta os materiais e invalida as versões mentirosas, conservadoras e reacionárias sobre o passado do país. É assim, por exemplo, que o diretor utiliza as pesquisas feitas para comprovar as fontes que atestam a participação dos EUA no golpe de 1964, contestar as declarações do Coronel Ustra e demonstrar as consequências da impunidade dos torturadores para a sociedade. Então, “Memória sufocada” conclui que a falta de um processo crítico de elaboração da memória sobre a ditadura entrelaça problematicamente passado e presente, mantendo a violência do Estado e o enfraquecimento de valores democráticos.
Um resultado de todos os filmes que já viu.