“MEDUSA” – Monstruosidade que liberta
Segundo a mitologia grega, a medusa seria um monstro de aparência horrenda com serpentes no lugar dos cabelos e o poder de transformar em pedra quem a olhasse diretamente. De acordo com a tradição cristã, a serpente seria o símbolo do pecado original por onde o demônio teria entrado no Jardim do Éden e tentado Adão e Eva. As duas iconografias convergem para MEDUSA, segundo longa metragem de Anita Rocha da Silveira, que faz uma leitura feminista do cinema e dos tempos obscurantistas recentes.
Na trama, uma gangue de mulheres atravessa a cidade disciplinando aquelas que sucumbem à tentação carnal. Mariana é uma das integrantes do grupo que precisa seguir um rígido modo de vida de entrega à fé, cuidado da beleza e preparação para ser a melhor esposa possível. Em certo dia, ela e as colegas ficam interessadas em saber o que aconteceu com Melissa, uma atriz que vivia ali até o momento em que foi brutalmente atacada. Na jornada para descobrir informações sobre a artista desaparecida, Mariana passa por transformações que a fazem rever sua vida até então.
O filme se passa em alguma comunidade semelhante a tantas encontradas no Brasil e em algum futuro próximo. Na primeira sequência, a diretora Anita Rocha da Silveira estabelece os primeiros traços de uma distopia neopentecostal que dialoga com “Divino amor” de Gabriel Mascaro. Em uma rua deserta, um grupo de mulheres mascaradas agride e intimida uma jovem transeunte, obrigando-a a admitir que seria uma devassa e a se sujeitar à vontade de Deus em um vídeo gravado por elas. Percebe-se, então, uma visão moralista e conservadora para o feminino, exemplificada na ideia de que uma mulher “decente” não andaria sozinha à noite naquela área. Além da própria ação cênica, a realizadora cria uma ambientação visual e sensorial expressiva através da trilha sonora misteriosa e da iluminação com luzes de segurança dos prédios no entorno. Com a combinação de som e fotografia, a narrativa assume uma dimensão distópica de pesadelo quase artificial.
Em outros momentos do primeiro ato, o universo diegético amplia as características de uma distopia que utiliza a história recente do país como fonte de inspiração. Atuando também como roteirista, Anita Rocha da Silveira comenta o tempo presente e extrapola para um cenário mais opressivo a partir do ambiente que cerca a protagonista. Mariana trabalha em uma clínica estética (afinal, cuidar da aparência física seria agradecer pela dádiva de Deus); tem uma melhor amiga chamada Michele, youtuber evangélica; torna-se mentora de uma jovem recém-chegada na cidade, que deve aprender a se comportar como uma mulher recatada; conversa com as colegas sobre um passado recente de pecado por culpa da presença de boates, bares e artistas. Os tempos atuais de reacionarismo social também se manifestam na forma como a distopia caracteriza instituições de poder, abordando a mistura entre política e religião na figura do pastor candidato à deputado e a legitimação da violência da força policial chamada Vigilantes de Sião para a defesa da moral e dos bons costumes.
Após contextualizar o universo do filme, a narrativa pode desenvolver o arco da protagonista sob a perspectiva feminista de analisar a opressão realizada nesse tipo de sociedade e de buscar estratégias de conscientização e de enfrentamento das práticas opressivas. Esta discussão se intensifica quando Mariana começa a trabalhar como enfermeira em uma clínica de pacientes em coma, considerando este emprego uma possibilidade de investigar o paradeiro de Melissa. A busca pela atriz “pecaminosa” gera mudanças consideráveis na protagonista, especialmente seu comportamento e visão de mundo. Em primeiro lugar, os impactos são alegóricos e atingem o corpo da personagem: sofre agressões e acidentes que ferem seu rosto deixando cicatrizes e altera o corte ou o penteado do cabelo que oculta ou deixa a face visível, remetendo graficamente a uma serpente ou a figura da medusa. Metaforicamente, Mariana passa a ser vista por sua comunidade como uma criatura monstruosa que se desvia do status quo cristão.
De modo similar ao que já havia feito em seu trabalho anterior, Anita Rocha da Silveira desenvolve a jornada da protagonista através de planos expressivos visualmente. O paralelismo entre a jovem e as imagens mitológicas da medusa ou cristãs da serpente é construído por planos detalhe de cartazes com o animal estampado, que surgem antes ou depois da aparição de Mariana, e por closes na personagens enquanto mantém uma franja do cabelo na frente da cicatriz ou todo o cabelo solto jogado para trás. Além disso, a abordagem atmosférica e simbólica adotada em “Mate-me por favor” está presente com alguma semelhança em seu segundo longa, graças à construção estilística das cenas. A cineasta cria um padrão de cores para definir cada aspecto da distopia, usando filtros de luz natural ou em tom rosa para o status quo, em tom verde e vermelho para momentos imorais, e uma névoa azulada para as sensações de delírio da jovem.
Mariana também se vê em uma realidade desconhecida dentro da clínica médica, chegando a agir de maneira muito diferente em comparação àquela pessoa que cantava na igreja. Ela observa os outros funcionários em situações enigmáticas, tem dificuldades para discernir entre o real e a fantasia, repensa suas atitudes subservientes para as amigas e os pretendentes dos Vigilantes do Sião e experimenta desejos sexuais inesperados. Anita Rocha da Silveira filma esses momentos sem dar respostas definitivas e flertando com toques de surrealismo na transição entre sonho, projeção delirante, realidade, lacunas temporais e mistério insolúvel. Porém, os novos comportamentos não são aceitos pela sociedade, e para mostrar a reação da comunidade, a narrativa assume um olhar opressivo que considera a protagonista um monstro ou uma vítima de possessão demoníaca. E como a opressão é profunda e estrutural, Mariana acredita estar sob uma influência maligna e age dessa maneira.
“Medusa” até pode apresentar provisoriamente a perspectiva opressiva que violenta as mulheres em uma sociedade patriarcal e moralista, mas faz isso para enfatizar o olhar inverso de quem precisa enfrentar essa violência. O terceiro ato se reorienta para uma dimensão coletiva acerca da manipulação social do poder – o uso deturpado da fé para favorecer a imagem do pastor -, da paranoia generalizada frente a um medo imaginário – criar uma falsa ameaça comunista para os costumes conservadores – e da existência de outros alvos da opressão para além da protagonista – a obsessão pela beleza física oculta a brutalidade a que Michele é submetida. Então, todas as humilhações e agressões vistas no filme têm um recorte de gênero. Por isso, a construção do clímax se apropria da imagem de uma monstruosidade feminina no cinema de terror para afirmar um papel de resistência às normas impostas, seguindo uma linha próxima ao que “A bruxa” fez. Consequentemente, cada mulher presente na narrativa passa por um momento de conscientização e de revolta, que se manifesta em uma espécie de poder fantástico próximo ao da medusa, capaz de dar um sentido libertador para a categoria monstro.
Um resultado de todos os filmes que já viu.