“MARY ESTÁ FELIZ, MARY ESTÁ FELIZ” – Adaptação em alguns caracteres
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).
Comentários e críticas sobre MARY ESTÁ FELIZ, MARY ESTÁ FELIZ tendem a se iniciar abordando o material de origem incomum que serviu de base para a criação do filme tailandês: 410 tweets seguidos de uma jovem chamada Mary Malony no perfil @marymalony do Twitter. Para além das indagações quanto aos motivos para escolher um meio que poderia soar limitado como inspiração para um roteiro cinematográfico, é possível refletir sobre os mecanismos variados utilizados pelo diretor Nawapol Thamrongrattanarit para dar origem a uma narrativa que se desdobra em níveis cada vez mais densos. Na superfície, é uma história de amadurecimento. No subtexto, é um exercício de confrontação com o material base.
A personagem que passa por uma trajetória de amadurecimento e dispara o exercício de estilo para uma adaptação cinematográfica é Mary. Ela está no último ano de uma escola na Tailândia e prestes a decidir para qual faculdade irá. Quem a acompanha para todos os cantos é sua melhor amiga Suri, por quem nutre um afeto especial. Nesse momento de mudanças na vida, Mary começa a enfrentar dilemas na sua amizade e nos relacionamentos amorosos. Tentando manter o controle sobre sua vida, a adolescente vivencia situações absurdas que colocam em risco sua estabilidade emocional.
O primeiro aspecto que chama a atenção é a forma como Nawapol Thamrongrattanarit se apropria dos tweets para estruturar a narrativa. À primeira vista, seria provável imaginar que o cineasta teria dificuldades de trabalhar com discursos com limitação de caracteres e ausência de coerência entre eles (apesar da quantidade no total e de alguns temas recorrentes relativos às duvidas da juventude). Entretanto, ele consegue utilizar as citações com criatividade para fazê-las ilustrar, comentar, ironizar ou contrapor o que aparece em imagens. É assim que um tweet representa um pensamento da protagonista que não se materializa em fala para um jovem por quem se apaixona, outro cabe perfeitamente para ser dito para a melhor amiga quando conversam sobre o futuro e mais alguns surgem para fazer comentários filosóficos sobre as incertezas da vida (embora entre esses tenham aqueles que tentam assumir uma profundidade que não tem, possivelmente reflexo de uma maturidade ainda em construção). Visualmente, o diretor mostra os tweets através de fade-outs ou simplesmente através de sua inserção na tela enquanto os acontecimentos se desenrolam, mas sempre fazendo questão de preservar o design do Twitter com as opções de compartilhamento, comentário e curtida.
Quaisquer que sejam os usos dos dos tweets, todos eles estão diretamente integrados à narrativa. São eles que ajudam a determinar o ritmo e as transições das sequências, seguindo uma velocidade compatível com a rapidez de informações no universo tecnológico contemporâneo e a agilidade própria das experiências dos jovens na atualidade (algo que pode ser entendido como uma concentração difusa ou como vivências pulverizadas em muitas dimensões simultâneas). Por isso, a passagem de uma cena para outra ocorre através de cortes secos pontuados pelo som de uma tecla sendo apertada (algo semelhante ao apertar o enter para publicar no Twitter) e as sequências apresentam curta duração como se fossem recortes sucessivos da adolescência. Dentro desse esquema visual e rítmico, Mary passa por momentos comuns para sua faixa etária e para o subgênero do coming of age ao lidar com anseios do presente (o primeiro amor e o término do colégio) e preocupações do futuro (os planos para uma faculdade, as relações com os pais e a manutenção ou não das amizades).
Nawapol Thamrongrattanarit não apenas incorpora a linguagem da plataforma na produção como também imprime sua visão ao estágio da vida da protagonista, representado tanto pelos tweets quanto pela ebulição de emoções de seu íntimo. O cineasta inicialmente encadeia passagens comuns com as quais os espectadores podem se identificar, como a casa vazia resultante da ausência da mãe (jamais explicada detalhadamente); as conversas com Suri sobre os destinos de ambas; o tempo em que as duas convivem de maneiras absolutamente prosaicas; o receio de Mary de não ter mais sua amiga por perto; as dúvidas se o amor pelo jovem que encontra nos trilhos do trem próximo a um vendedor de panquecas é correspondido e a preparação para o anuário escolar com as fotografias dos colegas de turma. Já em outras cenas, o realizador destaca como essa fase da vida pode ser preenchida por absurdos típicos dos jovens que querem experimentar tudo, pretendem se diferenciar dos pais e são movidos por impulsos, através de construções que beiram a comédia nonsense: a personagem principal compra uma água viva pela internet, recebe na escola alguns pássaros levados pelo tio e assá-los para comer, dorme várias vezes com os olhos abertos, precisa ir frequentemente à enfermaria por culpa de choques elétricos recebidos do celular e outros ferimentos incomuns…
É particularmente interessante como a narrativa é trabalhada de um modo a combinar as origens digitais do roteiro e a trama coming of age. Ao longo do arco de Mary, alguns momentos fazem com que ela se questione se vivia de acordo com suas escolhas ou com algum força reguladora e não apenas as falas nas quais essa ideia é explicitamente trazida à tona. Em outras ocasiões, a protagonista se vê na dúvida entre qual rota seguir em um trecho de bifurcação dos trilhos do trem (sobretudo, quando sua amiga ou seu amor platônico estão ali também para decidir qual caminho seguir) ou se poderia estar dentro de um filme ao comentar “As aventuras de Pi” enquanto assiste, ouvir de Suri que parece falar como uma personagem de cinema, confunde sonho com realidade ao interagir com Jean-Luc Godard e vê saindo do fax do colégio a primeira página do roteiro de “Mary está feliz, Mary está feliz” impressa com o nome do diretor e se pergunta quem seria ele. A metalinguagem e as dúvidas existenciais são elementos enriquecedores para a jornada dramática, porém ambos convivem com o uso repetitivo dos tweets sem tanta criatividade quando a vida amorosa da adolescente passa a ocupar o centro do quadro.
Se o segundo ato oscila ligeiramente por conta de um desenvolvimento mais interessante para a abordagem estética, este problema é superado quando os conflitos dramáticos são redirecionados para outras possibilidades. A não concretização de sua paixão e a separação forçada da amiga atingem Mary intensamente, o que a faz sentir o peso das rápidas transformações em sua existência como se fossem tragédias impossíveis de amenizar. Além das dores efetivamente pessoais com as quais teve que lidar, ela também precisa se acostumar com a modificação significativa do colégio onde estuda em virtude da troca de direção. A partir daí, o roteiro aborda tangencialmente questões como repressão à homossexualidade, culto à personalidade e autoritarismo no ambiente escolar sob a imagem do novo diretor jamais visto, mas de uma presença sempre sentida através da reorientação do ensino para cultuá-lo. Nesse segmentos, o diretor compreende que o humor não caberia mais, pois as novas experiências da protagonista pediriam uma abordagem mais dramática em sequências mais lentas e melancólicas que fazem o sofrimento de Mary transbordar graças às mudanças de tom da atriz Patcha Poonpiriya.
Acima de tudo, o terceiro ato tem o mérito de introduzir o uso mais criativo dos tweets. Ao invés de empregá-los como uma correspondência exata para os pensamentos, atitudes e sentimentos, a narrativa cria contrapontos que produzem ironias dramáticas ou resultados incômodos. É assim, por exemplo, que “me prenda se eu me perder” ganha sentidos extremamente assustadores ao ser combinado com imagens da violência da escola mascarado como mensagem motivacional de busca pela felicidade (o que faz o título do filme ser reorientado para uma dimensão negativa). Então, Nawapol Thamrongrattanarit não fica preso ao significado original que os tweets poderiam ter, até porque alguns podem soar aleatórios e sem uma relação imediata com os anteriores e posteriores, e confere a eles possibilidades mais expressivas que se relacionam com a história de amadurecimento e com sua compreensão de uma adaptação para o cinema. Mary atravessa uma história de amadurecimento na qual começa a aprender que parte de sua vida pode ser controlada por suas escolhas, enquanto outras estão além de suas preferências. E o filme não fica refém do material de inspiração, permitindo à narrativa e à personagem seguirem outros caminhos. Adotando uma liberdade criativa considerável com o passar do tempo, “Mary está feliz, Mary está feliz” faz um retrato inusitado da sociedade contemporânea moldada pelas redes sociais e tem um desfecho capaz de sintetizar diretamente o que construiu ao longo de duas horas através de uma jovem ouvindo que pode decidir o que gostaria de fazer.
Um resultado de todos os filmes que já viu.