“MARTE UM” – O vislumbre de uma utopia
O número de distopias no cinema brasileiro tem crescido nos últimos anos. É verdade que a pandemia do coronavírus contribuiu para a multiplicação de narrativas sobre futuros (ou presentes) alternativos, decadentes e pessimistas. Porém, “Branco sai, preto fica”, “Divino amor”, “Narrativas do pós”, “República” e “Voltei!” são títulos que retratam também o racismo, o fundamentalismo religioso, o neofascismo e os usos nocivos da tecnologia extrapolados para condições mais opressivas. É nesse contexto que está MARTE UM, um filme distópico na aparência que se revela, na verdade, um sopro de esperança quase utópico.
De início, a distopia está colocada a partir da eleição de um presidente de extrema direita. Entre os cidadãos que mais podem temer esse fato está uma família negra de classe média baixa. Os Martins vivem na periferia de Contagem e tentam, cada um à sua maneira, concretizarem seus sonhos, apesar de alguns conflitos familiares colocarem obstáculos nas vidas de um pai, uma mãe e dois filhos.
Em nenhum momento, o resultado da eleição presidencial interfere diretamente nas trajetórias dos Martins. Ainda assim, as referências à vitória eleitoral de Jair Messias Bolsonaro aparecem como projeções fantasmagóricas à espreita, como símbolos ameaçadores de tudo aquilo que se opõe à família. Quando Deivinho observa o céu e as estrelas, sua imaginação é interrompida por fogos de artifício e gritos de “É Bolsonaro!”. Quando Tércia faz os serviços domésticos, um programa jornalístico no rádio noticia a posse do vigésimo oito presidente da República. E na aula na faculdade de Direito, Eunice ouve a professora falar sobre a população carcerária no Brasil e a respeito da vitória de um projeto de governo pautado na privatização das prisões.
Ao mesmo tempo que as inserções de um futuro distópico são colocadas na trama, o diretor Gabriel Martins apresenta os quatro personagens principais. Tércia cuida de sua casa e ainda trabalha em outras residências, Eunice estuda Direito enquanto planeja ser mais independente dos pais, Deivinho se maravilha com uma aula de Ciências na qual o professor simula uma erupção vulcânica e Wellington trabalha em um prédio além de ajudar um funcionário recém-contratado. A construção de cada uma das quatro histórias interligadas faz surgir um mosaico de pessoas simples em contraste com o governante autoritário recém-eleito, algo evidenciado pela trilha sonora de Daniel Simitan. Se o cenário político projeta tempos difíceis, o acompanhamento instrumental cria um efeito lúdico e agradável que sugere possibilidades mais prazerosas para essas quatro vidas.
Gabriel Martins também oferece um retrato gentil a partir do roteiro escrito por ele. O estilo de contar histórias da produtora mineira Filmes de Plástico é mantido, remetendo a “Temporada” de André Novais Oliveira e a “No coração do mundo” de Gabriel e Maurílio Martins. Os personagens em questão são figuras humildes facilmente encontradas em nosso cotidiano, seus conceitos de felicidade não necessariamente exigem nada grandioso e seus conflitos surgem dos contratempos comuns de uma típica vida de classe média. Deivinho tem o sonho de ser astrofísico e de participar de uma missão de colonização de Marte em 2030, Eunice quer ter sua própria casa e morar com a namorada (a quem chama de amiga para os pais), Tércia sofre de ansiedade e pânico após ter vivido uma situação extrema e inesperada em uma lanchonete e Wellington busca reorganizar sua vida indo às reuniões de alcoólicos anônimos e deixando de beber.
Levando em consideração os prazeres simples da família Martins, não é de se estranhar que seria possível imaginar que a utopia, como uma existência ideal, seria alcançável. Inicialmente, todos eles conseguem desfrutar de momentos felizes e de relacionamentos encantadores: Eunice dança com a namorada em uma boate e fazem sexo em um apartamento vazio; Deivinho se diverte jogando futebol; Wellington e Tércia aproveitam uma festa com música e churrasco. Entretanto, o próprio arranjo familiar pode enfrentar seus conflitos e dificuldades, que dizem respeito às relações entre seus membros. Tércia pode cuidar de seus familiares, mas não tem quem cuide dela, especialmente depois que suas crises de pânico passam a acontecer mais constantemente. E Wellington até poderia querer fazer bem para os filhos, mais inconscientemente os oprime dificultando a saída de Eunice de casa e insistindo para Deivinho fazer um teste para jogar no Cruzeiro.
Mesmo tendo semelhanças com as demais produções da Filmes de Plástico, alguns aspectos mais desenvolvidos nos projetos anteriores fazem falta no novo lançamento. Usualmente, as narrativas exploravam de forma expressiva as locações de Contagem e de Belo Horizonte para tornar o espaço mais um elemento dos arcos dramáticos dos personagens. Dessa vez, o diretor de fotografia Leonardo Feliciano utiliza com mais frequência planos médios ou fechados em cenas internas – vez ou outra, algumas sequências são filmadas em planos gerais mais abertos e captam a cidade, como o momento em que Eunice e sua namorada visitam apartamentos à venda. A construção visual mais usada e que traz possibilidades interessantes é o fechamento do quadro em torno dos personagens quando estão sufocados por algum problema (Deivinho e Eunice contrariados em seus desejos por maior autonomia, Wellington confrontado por uma notícia ruim no trabalho e Tércia vulnerável pela falta de apoio familiar ao seu problema).
Este padrão visual poderia enfatizar ainda mais o contraste entre as esperanças por um vida harmoniosa, feliz e ideal (utopia) e as limitações criadas por desentendimentos familiares e projeções de um futuro político nada promissor (distopia). No entanto, o uso expressivo da espacialidade como elemento estético se torna cada vez mais discreto conforme a narrativa avança. Sendo assim, o filme se utiliza muito mais do desenvolvimento da dramaturgia para trabalhar as diferentes expectativas para o porvir dos personagens. No início do terceiro ato, todos eles estão no limite de suas condições, principalmente Deivinho e Wellington, que tomam atitudes radicais para conseguir seus objetivos ou passam por problemas sérios, e acabam se confrontando. E nesse embate, o desejo do menino de participar de uma futura operação espacial aparece como a metáfora da fuga de uma realidade opressiva, marcando o lugar da distopia. O que vem a seguir oferece outra possibilidade: a sequência final em que a família está reunida fora de sua casa olhando o céu fornece um vislumbre de esperança, uma sensação utópica de que é possível construir uma vida melhor no presente a partir da colaboração de todos. Como Wellington diz, “podemos dar um jeito.”
Um resultado de todos os filmes que já viu.